Rua 24 de Outubro, mas ela também atende por Rua do Poder
Acanhada, acidentada, curta, com trânsito em sentido único, ladeada por antigas construções que desafiam o tempo, enquanto outras, modernas, surgem ao seu lado. Assim é a Rua 24 de Outubro , no centro de Cuiabá. Quem passar por ela e não tiver conhecimento da história política mato-grossense nem de longe poderá imaginar que em algumas de suas casas viveram crianças e adolescentes que mais tarde seriam governadores, senadores, deputados, prefeitos e que há quase meio século ocuparam, dividiram ou disputaram o poder em Mato Grosso. Frederico Campos, os irmãos Júlio Campos e Jayme Campos, Benedito Canelas, Antero Paes de Barros, Júlio Domingos de Campos – o seo Fiote, Roberto França e Zanete Cardinal formam o grupo de seus ilustres moradores. Cabala, mandato biônico, frustração, vitórias, companheirismo, pé atrás e os insondáveis caminhos da política desfilaram pela famosa e tinhosa rua. Algumas de suas figuras continuam em cena, desafiando a idade e correndo atrás do poder. Seo Fiote morreu em 20 de setembro de 2007, aos 90 anos. Canellas tinha 77 anos em 1º de janeiro de 2016, quando faleceu. O que seus personagens fizeram ou tentaram fazer por meio das urnas é de domínio público. Porém, ela guarda um segredo dos porões do regime militar, que resultou na nomeação de um governador.
Júlio e Jayme foram governadores e eleitos ao Senado. O primeiro foi prefeito de Várzea Grande em um mandato e deputado federal em duas legislaturas. O outro por três vezes administrou aquela cidade e em 2018 novamente foi eleito senador.
Seo Fiote, pai de Júlio e Jayme, foi vereador e duas vezes prefeito de Várzea Grande.
Pelas urnas Frederico foi prefeito de Cuiabá. Também foi nomeado prefeito e governador pelo regime militar.
Canellas cumpriu mandatos de vereador por Cáceres, deputado estadual, deputado federal e senador.
Zanette foi prefeito de Rondonópolis, deputado estadual e suplente do senador Júlio Campos.
Antero começou a carreira ao se eleger vereador por Cuiabá, depois chegou à Câmara Federal tendo sido deputado federal constituinte; mais tarde foi secretário de Estado no governo de Dante de Oliveira, e senador.
França foi vereador, presidente da Assembleia Legislativa, prefeito de Cuiabá e deputado federal.
BIÔNICO – Paulista de São Manoel, José Benedito Canellas era deputado federal pela Arena de Mato Grosso e morava na 24 de Outubro. Àquela época, por força do regime, não se elegia governador, prefeito de capital e de cidades da faixa de fronteira pelo voto direto: ganhava o cargo quem melhor articulasse ou tivesse pistolão nas Forças Armadas.
Canellas era o ungido para governar Mato Grosso e tinha um padrinho quatro estrelas, o general e chefe do Serviço Nacional de Informação (SNI), João Figueiredo, que seria o próximo presidente por escolha de Ernesto Geisel. A 24 de Outubro estava em festa com a iminente indicação de seu morador ilustre para suceder o governador José Fragelli, também nomeado.
A rua realmente comemorou a escolha, porque ninguém deixa de festejar vizinho quando esse chega ao poder. A festança não correu por conta de Canellas, que ficou jururu.
O escolhido foi o engenheiro civil cuiabano Frederico Carlos Soares Campos, que carregava na bagagem genética a condição de sobrinho do general de Exército e comandante da 2ª Região Militar, Dilermando Gomes Monteiro.
A nomeação de Canellas era tão certeira que um dia após a opção por Frederico, a Folha de São Paulo cometeu tremenda gafe: noticiou que o deputado teria abiscoitado o governo.
Sobre a nomeação de Frederico para governador, Canellas tem um versão. A do nomeado, obviamente, é outra. Sem muita convicção, o ex-governador sustenta que caiu nas graças de Geisel quando o presidente tomou conhecimento de um estudo técnico sobre a divisão territorial de Mato Grosso por ele elaborado na condição de secretário de Viação e Obras Públicas do governo Garcia Neto.
A bancada federal por Mato Grosso articulava apresentar os nomes de Canellas e Frederico a Geisel. O escolhido teria aval político dos demais. A sorte de Frederico prevaleceu sobre os deputados e senadores pelo dedo do tio, general Dilermando Monteiro.
Num jantar em Brasília Geisel brincou com Dilermando que a sucessão em Mato Grosso era complicada porque todos os políticos estavam na parada, inclusive – teria dito – seu sobrinho (Frederico). A reação do tio foi decisiva: “por esse rapaz boto as mãos no fogo”. O presidente não pensou duas vezes e descartou os demais, inclusive Canellas.
CANELLAS – A trajetória de Canellas na política foi espetacular. Amigo do governador Pedro Pedrossian, trocou São Paulo por Mato Grosso e ganhou a chefia da extinta Codemat, a companhia de desenvolvimento do governo. Sua área de atuação foi em Cáceres, mas sua casa era na 24 de Outubro, onde morou de 66 a 78, quando se mudou para Brasília. A antiga moradia Canellas cedeu para o deputado estadual Zanete Ferreira Cardinal, que foi empossado no cargo em 1979; antes Zanete foi prefeito de Rondonópolis.
Em 1966 Canellas disputaria a eleição para prefeito de Cáceres, mas foi barrado pela legislação eleitoral: votava em Botucatu (SP). A lei não o impedia de concorrer a vereador e ele se elegeu pelo PSD com 1.313 dos 1.800 votos válidos do município. Ernani Martins (PSD) ganhou a prefeitura disputando em candidatura única que teve o pai dos irmãos Márcio e Zé Lacerda, José Lacerda (PTB) por vice.
Em 1970 Canellas se elegeu deputado estadual. Experimentou nova vitória em 74, dessa vez para a Câmara Federal. Quatro anos depois conquistou uma cadeira no Senado. Nas três eleições teve por legenda a Arena. A eleição para o Senado naquele ano foi atípica: Mato Grosso acabara de ser dividido para a criação de Mato Grosso do Sul. O Estado precisava ocupar três cadeiras na Câmara Alta. O candidato mais votado cumpriria mandado de oito anos, o segundo colocado, de quatro e, um terceiro nome seria nomeado bionicamente para mandato integral. Canellas obteve a maior votação seguido por Vicente Vuolo. Gastão Müller ganhou o cargo biônico e arrastou na suplência o cartorário de Barra do Garças, Valdon Varjão. No Congresso o papel de Canellas, segundo avaliação dele, foi o de facilitar aporte de recursos para Mato Grosso.
O SOBRINHO – Frederico tratou de retribuir a gentileza ao Planalto. Acompanhado pelo embaixador Roberto Campos foi ao gabinete de Golbery do Couto e Silva, o guru do regime. Perguntou ao anfitrião se haveria interesse do governo numa candidatura de Roberto Campos ao Senado. “Claro, claro” foi a resposta.
Paulo Maluf soube da sondagem de Frederico e tentou articular a candidatura de Roberto Campos ao Senado por São Paulo. Golbery descartou a oferta por julgá-la inviável.
Livre da interferência de Maluf o governador de Mato Grosso lançou um produto novo no mercado político: Roberto Campos 82. A retribuição do embaixador foi generosa. Conseguiu milhões de dólares para o governo tocar a administração, uma vez que a União não dava conta de cumprir o dever constitucional de arcar com o custeio dos dois novos estados advindos com a divisão territorial que criou Mato Grosso do Sul em 1977.
O montante conseguido por Roberto Campos em empréstimos no exterior foi muito alto. Frederico nem se lembra mais quanto. “Sei que somente num programa financiado pelo BID, foram US$ 200 milhões incluindo a contrapartida da União”.
A montanha de dinheiro canalizada por Roberto Campos não chegou à Cuiabá na administração de Frederico. A dinheirama correu solta após ele deixar o Paiaguás, quando Júlio era governador e tinha a chave do cofre.
A burocracia retardou o desembolso e Frederico não conseguiu aplicar os recursos em obras. Ele, porém, se sente realizado, “consegui os meios necessários para o desenvolvimento”, analisa.
A escolha biônica não deixa Frederico constrangido. Sabe que aquela era a situação ditada pelo momento institucional. Desse período guarda boas recordações, uma delas a eleição de Júlio para governador. “Isso é feito inédito porque situação não faz sucessor em Mato Grosso”, comemora.
HISTÓRIA DA RUA – Seu primeiro nome foi Senador Azeredo, em homenagem ao advogado cuiabano e senador por quatro mandatos consecutivos, Antônio Francisco Azeredo, que nasceu em 22 de agosto de 1861 e morreu no Rio de Janeiro em 8 de março de 1936.
A data que dá o nome à rua refere-se ao dia em que se desencadeou a Revolução de 1930, pela qual Azeredo caiu em desgraça. Naquela revolução Getúlio Vargas depôs o presidente Washington Luís, os governadores e prefeitos, fechou o Congresso, as Assembleias, Câmaras Municipais e marcou o fim da chamada Velha República.
Com essa revolução Mato Grosso teve sucessivos interventores com curtos mandatos. E foi o segundo deles, o coronel do Exército Antonino Mena Gonçalves, que permaneceu no cargo de 3 de novembro de 1930 a 24 de abril de 1931. Para agradar Vargas, Mena Gonçalves tratou logo de mudar o nome da rua para 24 de Outubro.
Redação blogdoeduardogomes
FOTOS:
1, 3, 4 e 8 – Arquivo blogdoeduardogomes
2 – José Luiz Siqueira
5 e 6 – Agência Senado – Arquivo
7 – Geraldo Tavares – Arquivo
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