Triste deportação e hienas falantes
Eduardo Gomes
@andradeeduardogomes
eduardogomes.ega@gmal.com
Minas sangra. O Vale do Rio Doce mineiro, mais ainda. O sangramento é pela política de deportação do presidente americano Donald Trump. Com dupla tristeza acompanho o desenrolar dos fatos – dupla pelo ato em si e pelo aproveitamento do cenário para as mais absurdas manifestações do falso moralismo ideológico de direita que tenta desqualificar a dor dos deportados e o direito de reação diplomática e administrativa do Brasil.
Os Estados Unidos nunca digeriram bem a presença estrangeira, muito embora aquele país tenha sido feito por imigrantes e, exemplo de sua ascendência é que a senhora Mary Anne MacLeod, mãe de Trump era escocesa. Porém, nunca um governo foi tão incisivo e agressivo quanto ao atual no tocante aos estrangeiros e esse radicalismo atinge em cheio o Vale do Rio Doce, de onde partiram milhares em busca de dias melhores no grande país ao Norte.
Em Mato Grosso, a reação de Trump aos brasileiros (e outros povos) não é vista com o olhar da solidariedade pátria, nem com humanismo por figuras rotulares da direita. Para essa gente, a fúria do presidente americano é apenas mais uma oportunidade para se traçar comparativos entre Lula e seu antecessor, Bolsonaro. O ser humano deportado não conta. As dores dos familiares no Vale do Rio Doce, também não pesam. O que interessa ao espírito hienista (permitam-me o etimologismo) deles é a entre aspas argumentação para o levantamento da bandeira bolsonarista.
Conheço bem o Vale do Rio Doce, onde nasci em Barra do Cuieté, município de Conselheiro Pena (MG). É uma região que tem bolsões de opulência, mas que caracteriza-se pela pobreza, apesar do espírito de seu povo trabalhador.
Sem oportunidades no Brasil, o mineiro daquela região descobriu Boston, em Massachusetts, e há mais de 60 anos parte para aquela cidade e seu entorno, em busca de trabalho. Boston é referência, mas eles estão em todas as regiões do país. A ida, invariavelmente, é difícil.
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A família vende a vaquinha leiteira, os capados gordos, a suruana e junta os dólares suficientes para a emigração. Em Alpercata (sete mil habitantes), onde vivi a infância e a adolescência, em cada sacada de janela, um rosto triste de alguém cabisbaixo chorando pela filha, filho, netos, generos, noras, sobrinhos e vizinhos que foram fazer a América e agora estão ameaçados. A tristeza toma conta de todas as casas, pois a juventude em peso da pequena cidade está em Boston, Winthrop, Revere, Chelsea, Everett, Somerville, Newton, Brookline, Needham, Dedham, Canton, Cambridge e nas demais cidades dentro e próximas da Grande Boston.
Poucos conseguem a proeza da obtenção do Green Card. A maioria forma a multidão de invisíveis, que trabalha de sol a sol. Lá, a mineirada labuta no pesado prestando serviços que os americanos não querem mais executar. O resultado de anos no batente transforma-se em sítios, onde no regresso seus donos vivem o sonho do pedaço de terra para plantar, colher e viver em paz ou até mesmo numa simples meia-água no pé de algum dos morros alpercatenses.
Brava gente mineira!
O destempero emocional do homem que comanda o maior país é visível. Trump vê em cada latino-americano um inimigo. Seu descontrole atinge a todos, indistintamente. No sábado anterior, o Atlético Mineiro jogou em Orlando, na Flórida, contra o clube do mesmo nome. O estádio estava praticamente vazio, pela ausência da torcida atleticana local, que poderia lotá-lo. Porém, com o pé atrás, milhares de mineiros deixaram de ver o Galo do coração, temendo a Imigração.
Deixar de ir ao estádio não significa nada diante do cenário de pavor que domina os lares dos mineiros em Boston. Os olhos de Trump estão em todos os lugares em busca da mineirada.
A presença maciça dos ilegais nos Estados Unidos é praticamente uma guerra perdida, mas é preciso enfrentá-la e tentar botar fim a esse ciclo de isolacionismo que Trump busca. Todos os que forem deportados serão algemados e amarrados. É a regra americana. Porém, a deportação não pode servir de pretexto para tortura, como aconteceu no voo interrompido em Manaus após a reação dos passageiros, o que levou o presidente Lula da Silva a determinar o fim do acorrentamento e das algemas pelos nacionais em solo pátrio. Além de cobrar explicações diplomáticas à Casa Branca.
O cerco continuará fechado aos nossos nos Estados Unidos. Teremos que conviver com a política de Trump e o Brasil precisa ficar vigilante para que não se repita o que aconteceu no voo com os primeiros deportados na gestão de Trump que ora se inicia.
Diplomacia se faz com reciprocidade. Após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, Washington impôs uma série de medidas adicionais de segurança aos brasileiros. Em Cuiabá, o então juiz federal Julier Sebastião da Silva devolveu com a mesma moeda: os americanos que chegavam ao Brasil eram obrigados a serem fotografados ao estilo policial e a deixarem suas digitais no banco de dados da Polícia Federal – o famoso tocar piano. Nenhuma resposta aos atos de deportação está em vigência.
O governo tem que ser firme, mas sem histeria ou xenofobia como se vê com Trump. No caso de Manaus o sistema judicial não prendeu os agentes da Imigração americana denunciados por tortura pelos passageiros. O episódio colheu de surpresa o Itamaraty e o Ministério da Justiça e Segurança Pública, que não reagiram à altura. Além da realidade nos Estados Unidos, que em algumas situações pode ser análoga ao trabalho escravo, os mineiros recém-chegados ainda sofreram maus tratos, na terra onde em 29 de setembro de 2006 os pilotos americanos Joseph Lepore e Jan Paul Paladino causaram um acidente que resultou na morte dos 154 ocupantes de um jato da GOL, com o qual colidiram sobre as matas da Terra Indígena Capoto/Jarina, do lendário cacique Raoni Metuktire, em Peixoto de Azevedo.
Aqui, não prendemos os dois aviadores que provocaram 154 mortes de brasileiros. Nos Estados Unidos, trabalhadores brasileiros humildes são tratados como se fossem bandidos. Ainda aqui, hienas insensíveis ao sofrimento dos nossos, buscam levar para o campo da pseudo ideologia a tragédia que deixa Minas e principalmente o Vale do Rio Doce sangrando.
Não será fácil, mas o Brasil precisa mostrar aos Estados Unidos os antigos elos do Vale do Rio Doce com Boston e vice-versa, senão vejamos:
MEMÓRIA – Em 1903 começou a construção da Estrada de Ferro Vitória a Minas e pouco tempo depois foram descobertas grandes jazidas de minério de ferro em Itabira e região. A ferrovia planejada para o transporte de madeira e café foi utilizada para o escoamento do minério de ferro e mica, indispensáveis à indústria bélica americana, quando em 1917 o país entrou na Primeira Guerra Mundial (1914/18) .
Após o primeiro conflito mundial a demanda por ferro e aço nos Estados Unidos aumentou e a Estrada de Ferro Vitória a Minas ganhou importância estratégica. A concepção do projeto original da ferrovia não suportaria o aumento do fluxo das composições e de cargas. Em 1942 uma empresa de Boston foi contratada para modernizá-la e naquele ano o casal Simpson – ele, Mister Simpson, engenheiro, e ela Geraldina Simpson, portuguesa naturalizada americana e professora de Inglês, mudou-se para Governador Valadares – a principal cidade do vale.
Engenheiro da ferrovia, Mister Simpson com seu inseparável cachimbo tornou-se figura popular em Valadares e desfilava por suas ruas em um jipão de guerra. Dona Geraldina fundou o Instituto Brasil Estados Unidos (IBEU) e lecionou Inglês em vários colégios. Nos anos 1960 fui aluno de dona Geraldina tanto no IBEU quanto no Colégio Ibituruna, ambos em Valadares.
Tanto ele quanto ela – os Simpson – eram simpáticos. Dona Geraldina não economizava elogios aos Estados Unidos, sobretudo a Boston. De tanto falar sobre Boston, a professora despertou interesse em jovens por aquela cidade, onde a mineirada grita nas calçadas: Nóis é nóis e o resto é Bosto.
Creio que minha professora de Inglês contribuiu e muito para a opção dos mineiros.
Portanto, a estrada de ferro construída no Vale do Rio Doce foi muito importante para a indústria bélica americana na Segunda Guerra Mundial. Historiadores afirmam que 80% do armamento americano era fabricado com o minério de ferro e a mica transportados nos vagões dos trens da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), que explorava a ferrovia. Valadares passou a ser lar adotivo dos Simpsons. A recíproca, por lá, não é verdadeira, pelo menos no tocante ao presidente Trump.
Para nós, a ferrovia antecipou a ocupação do Vale do Rio Doce, onde fez brotar dezenas de cidades e o polo sidero-metalúrgico de Ipatinga (cidade com 228 mil habitantes) e uma série de indústrias, incluindo a Cenibra, que produz celulose em Belo Oriente.
Ambos os lados saíram ganhando com a ferrovia, mas mesmo assim, a exemplo do que ocorre Brasil afora, não há emprego para todos no Vale do Rio Doce e a concentração de renda é muito grande. Além do ganho bilateral, dona Geraldina Simpson ensinou o valadarense a gostar de Boston.
Em diplomacia não há lugar para sentimentalismo, mas quando o mineiro entra em cena isso é possível, pela sua capacidade de articulação, seu jeitão, sua astúcia. Que nos Estados Unidos voltemos aos bons tempos da harmonia dos valadarenses com o casal Simpson.
Quanto ao hienismo, por mais barulhento que seja não tem força para agravar a relação de Trump com os mineiros – quando muito serve para mostrar que até mesmo numa grande e ímpar nação há espaço para descerebrados tentarem desqualificar a dor de tantos, para que tenham discurso em defesa de um palanque acéfalo. Talkei!
Fotos:
3 – Agência Brasil
4 – Arquivo Diário do Rio Doce – Governador Valadares
5 – Vale