Tudo era estranho para todos. Cada um em sua individualidade ou em família buscando o amanhã que não encontrava em seu berço. Comum a todos, a vontade de vencer na vida, no Nortão, região onde havia somente uma cidade: Porto dos Gaúchos. Os tocos carregados com trastes de mudanças e muitos sonhos venciam a Caixa Furada, passavam pelo entroncamento da Estrada do Rio Novo, percorriam alguns quilômetros e paravam no Gil. Os radiadores dos possantes esquentavam na subida da serra. A temperatura amena no topo do divisor das bacias do Prata e Amazônica era tudo que precisavam. Melhor ainda quando conseguiam estacionar à sombra de alguma árvore retorcida do cerrado. Vivi aquele período, sem proximidade com o paranaense de Itambaracá Gilberto Silvério de Almeida, o Gil, que emprestava o nome ao seu posto de combustível naquele canto do município de Diamantino. Meio século depois fui apresentado a ele pelo texto da colega Liz Brunetto, numa reportagem carregada com o melhor espírito jornalístico, aquele que mergulha na alma das pessoas.
Ninguém dizia Posto Gil. Todos os que se referiam a ele o chamavam de Gil. Sua fama – a do estabelecimento – rompeu divisas, chegou ao Paraná, Rio Grande do Sul, São Paulo, Brasil afora no ciclo em que o país dividia-se entre os que estavam no Nortão e aquele que queriam ir para lá. A Cuiabá-Santarém (de Cuiabá ao Gil em trechos coincidentes da BR-163/364) era movimentada. No verão amazônico, um canudo de poeira, perigoso, traiçoeiro. No inverno, um lamaçal sem fim caracterizado pelo atoleiro na Piúva. De Cuiabá ao Gil, 150 km cruzando a siamesa Várzea Grande, Jangada, Rosário Oeste e Nobres. Uma boa esticada de três horas e meia a quatro ao volante do possante.
No Gil o motorista e seus acompanhantes encontravam o que precisavam. Diesel, gasolina, óleo lubrificante, borracharia, mecânico frouxa roda, uma cervejinha gelada pois ninguém é de ferro, restaurante com comida caseira, lanchonete com tira-gosto, um banheiro simples e vasos sanitários desinfetados com Creolina Pearson, o que deixa o ambiente impregnado com o cheiro forte daquele desinfetante. No sentido Cuiabá-Santarém, ao lado do Gil (o posto), no trevo onde a BR-364 abre passagem para Diamantino, rumo reto, e para Sinop à direita, havia um destacamento do 9º Batalhão de Engenharia de Construção (9º BEC); os militares mantinham uma corrente – o correntão – sobre o leito da rodovia e todos que ali passavam, eram identificados. Também na barreira militar o pessoal de endemias da Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (Sucam) vacinava contra a febre amarela e ensinava noções de prevenção contra a malária e a leishmaniose.
NASCE O GIL – Nos anos 1960 e na década de 1970 o Brasil vivia o sonho do crescimento. A família Rezende, da Empresa Construtora Brasil (ECB) venceu licitações para executar obras em Mato Grosso incluindo a conservação da BR-364 de Várzea Grande a Diamantino. Gil era seu colaborador. Em 1968, antes da instalação do 9º BEC em Cuiabá, ele e sua mulher Ivete Borges de Almeida montaram o Posto do Gil, que virou Gil.
Próximo ao Gil o 9º BEC construiu uma pista de pouso numa área cedida pelo proprietário. Não se tratava de glamourizar o transporte de autoridades à região. O coronel José Meirelles, comandante do 9º BEC, certa vez me disse que o improvisado aeródromo era estratégico para a remoção de militares e funcionários civis da obra da Cuiabá-Santarém, em caso de acidente rodoviário, queda de árvore sobre máquina, picada de cobra ou malária com quadro agravado.
O Brasil tinha pressa para ocupar o Nortão. À frente do 9º BEC Meirelles abria a Cuiabá-Santarém num ritmo frenético. Vera, Santa Carmem, Cláudia, Marcelândia, Nova Santa Helena, Colíder, Nova Canaã do Norte, Carlinda, Alta Floresta, Nova Monte Verde, Nova Bandeirantes, Paranaíta, Apiacás, Itaúba, Terra Nova do Norte, Nova Guarita, Peixoto de Azevedo, Matupá, Guarantã do Norte, União do Sul, Feliz Natal, Sinop, Sorriso, Lucas do Rio Verde, Nova Mutum, Tapurah, Tabaporã, Novo Horizonte do Norte, Juara, Nova Ubiratã, Santa Rita do Trivelato, Boa Esperança do Norte, Itanhangá, Ipiranga do Norte e Novo Mundo, não necessariamente nesta ordem e juntamente com Porto dos Gaúchos já existente, surgiram e compõem a base territorial daquela região que é um dos pilares da política de segurança alimentar mundial, e que mais dia menos dias será estado, o Estado de Mato Grosso do Norte.
O Gil tinha uma espécie de visgo. Era parada obrigatória dos motoristas que circulavam na vizinha Estrada do Rio Novo, transportando látex extraído de seringais nativos, braquiária para formação de pastagem, madeira bruta e equipamentos para as agropecuárias em seu curso. Essa estrada avança da Cuiabá-Santarém ao local onde mais tarde o colonizador Ênio Pipino fundou Vera, e onde a Irmã Adelis iniciou seu trabalho humanitário em Mato Grosso. Ela também dá acesso à Gleba Rio Ferro, de Yassaturo Matsubara, que tentou implantar um projeto de pimenta-do-reino na mesma, mas deu com os burros n’água.
Gil – o posto e seu dono – prestaram relevantes serviços ao processo de interiorização do Brasil na calha do rio Teles Pires, como parte da política de segurança nacional alicerçada pelos bordões Terra Sem Homens Para Homens Sem Terra e Integrar para não Entregar.
Entre a chegada de uma mudança e outra, de uma serra fita e uma pica pau, de um CBT 1090 e uma máquina de arroz Zaccaria, de um motor estacionário Tobata e um Toyota Bandeirante, de um gadinho curraleiro e uma tropa, de uma bomba para garimpo e uma colheitadeira, e de cada pedacinho do Brasil que chegava, Gil foi uma mão amiga estendida. Virou referência geográfica: Fica a 100 km do Gil ou Do Gil até lá são 350 km.
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Lenda é para sempre. Gil, também, por mais que o tempo insista em desfigurar, mutilar e volatilizar sua presença. O velho posto permanece no mesmo lugar. O homem que lhe emprestou o nome, não mais. O estabelecimento está em outras mãos – desde um acidente sofrido em 2013 por seu criador. Gil, o estabelecimento funciona cercado pelas casas construídas no loteamento lançado junto a ele, por Gil.
No primeiro dia deste abril, como nos revela o texto de Liz Brunetto, Gil, aos 81 anos, pegou a estrada para o infinito, que leva aos braços do Criador, e do céu, à noite, brilha no firmamento sobre o empreendimento que criou. Deixou de ser uma lenda vida. Entrou no campo do imaginário e virou lenda, simplesmente lenda, a Lenda do Gil. Foto:
Foto: Acervo de família reproduzido por midianews.com.br
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