Boa Midia

A dor do pai que perdeu o filho na estupidez de um treinamento militar

Nenhuma frase dolorida, nem todas as lágrimas rolando pela face ou o mais triste dos lamentos se compara ao silêncio da voz sufocada e da inquietação da alma do pai que perdeu o filho Rodrigo Patrício Lima Claro, 21, para o excesso de zelo num treinamento aquático do Corpo de Bombeiros Militar em Cuiabá. Uma cortante ausência e som e movimento nos isola. De um lado, Antônio Claro, o pai. Do outro, eu, que o entrevisto. Entre nós, um fosso quase intransponível pelas silenciosas trevas que o envolvem e o imobilizam.

Espero alguns minutos. Ele não move um músculo da face. Seus olhos não brilham, parecem fixos em algum ponto imaginário. Com paciência o aguardo; continuo aguardando… Peço um copo d’água para despertá-lo, mas não noto nenhuma reação.

Saio de minha cadeira, vou ao outro lado da mesa para tentar motivá-lo. Ofereço um cumprimento e no primeiro momento não sou correspondido. Depois corresponde e sua mão está fria, suada…

O ambiente fica menos tenso. Peço licença e atendo um telefonema. Retomo a entrevista. Aos poucos ele se recompõe. Conversamos preliminarmente. Fico sabendo que é segundo tenente bombeiro e está na corporação há 24 anos, mas sem perder o jeito pantaneiro de ser, que herdou no berço, nem a humildade de quem ganhou o pão ao cabo da enxada sob o abençoado sol mato-grossense.

– Desabafe – Peço.

“Eles mataram meu filho e a mim também, mas não me calarão”, desabafa.

– Calar?

“Sim, pois sou bombeiro sujeito a hierarquia”, responde.

– É…

“Eles podem impedir que eu fale enquanto bombeiro, mas na condição de pai, nunca”, argumenta.

– Quer falar sobre a morte de seu filho?

“Não, meu querido filho não volta mais. Quero alertar para que outros jovens não morram estupidamente como meu filho morreu num treinamento do curso de formação de soldado bombeiro militar, onde ao invés de ensinamento praticaram tortura”, desabafa.

– É grave acusar alguém por tortura…

“Sim – retruca. Falo com base na apuração dos fatos pela Delegacia de Homicídios (DHPP), na denúncia do Ministério Público, que foi aceita pela juíza Selma Rosane Arruda, da Sétima Vara Criminal de Cuiabá. Falo também baseado naquilo que ouvi dos colegas de turma do meu filho, que a tudo presenciaram”.

– Está atrás de indenização ou punição para alguém?

“Não estou atrás de indenização e a Justiça está cumprindo bem a parte dela. A primeira audiência judicial foi marcada pelo juiz Marcos Faleiros da Silva, da Sétima Vara Criminal, para 26 de janeiro do próximo ano. Na corporação foram tomadas medidas administrativas contra os acusados”.

– Então não há mais nada a ser feito?

“Há sim. É preciso humanizar os treinamentos, respeitar o limite físico e psicológico dos alunos, antes que outros também morram como o meu filho morreu”, resume.

– O Corpo de Bombeiros Militar o procurou?

“Nunca, nunca, nunca… Somente recebi mensagens sugerindo para não dar entrevistas. Eles não querem manchar a corporação”.

– E se eles o procurarem…

“Não gostaria que isso acontecesse porque não faria bem pra mim, minha mulher, meus dois filhos e a moça que foi namorada do meu filho que morreu”, responde com firmeza.

– Como está sua condição de oficial bombeiro militar da ativa?

“Estou em tratamento psicológico, com atestado médico, mas permaneço em Sinop, perto do meu batalhão (4ª Batalhão Bombeiro Militar)”.

– O que o leva a procurar a imprensa nesta data (15 de setembro)?

“Hoje é um dia triste, de muita saudade. Foi num dia 15, o de novembro do ano passado, que meu filho Claro partiu”, finaliza.

O CASO – Claro era um dos integrantes da 16ª turma de alunos a soldado do Corpo Bombeiros Militar. Em 10 de novembro do ano passado, durante um treinamento na Lagoa Trevisan, em Cuiabá, ele passou mal, mas a instrutora do curso, tenente Izadora Ledur de Souza Dechamps, não o liberou. A investigação feita pela Polícia Civil descobriu que ao invés de receber atendimento, o aluno foi submetido a ‘caldos’. Na área do treinamento não havia ambulância da corporação. Debilitado, Claro foi para o seu batalhão no bairro Verdão, de onde seguiu para ser atendido na Policlínica do Verdão nas proximidades daquela unidade. Removido para o Hospital Jardim Cuiabá, foi submetido a uma cirurgia e ficou internado numa UTI por cinco dias, até fechar os olhos para sempre. A causa da morte foi atestada pelo IML como acidente vascular cerebral (AVC).

Claro concluiria o curso no final deste ano. Namorava Nadine Hurtado. Deixou os pais Jane Patrícia e tenente Claro, e os irmãos Roger, 17, e Ibsen, 9.

A tenente Ledur foi denunciada pelo promotor Sérgio Silva da Costa, do Ministério Público, por crime de tortura seguido de morte, o que foi aceito pela juíza Selma Rosane. O MP também pediu sua prisão, mas a magistrada não a decretou. No entanto, a oficial cumpre medidas restritivas e dentre elas a de uso de tornozeleira eletrônica.

Ledur e outros bombeiros acusados pela morte de Claro foram afastados administrativamente de suas funções na corporação.

OUTROS CASOS – Claro não foi a primeira vítima dessa natureza em Mato Grosso.

No domingo, 5 de abril de 1998, a Academia Costa Verde, da Polícia Militar, realizava treinamento com cadetes na região de Cáceres. Os alunos a oficial Sérgio Kobayashi, 26, e Evaldo Bezerra Queiroz, 29, morreram nas águas do córrego Padre Inácio; ambos estavam cansados após um dia de intensa atividade física, carregavam mochilas e vestiam o pesado uniforme da Polícia Militar.

No sábado, 24 de abril de 2010, o soldado da Polícia Militar de Alagoas e a serviço da Força Nacional de Segurança, Abinoão Soares de Oliveira, 34, morreu após afogamento no lago da Hidrelétrica de Manso, em Chapada dos Guimarães. Abinoão participava do 4º Curso de Tripulantes Multi-Missão ministrado em Mato Grosso pela Polícia Militar juntamente com o Corpo de Bombeiros Militar, para 25 soldados locais e de outros estados.

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