Boa Midia

Gente fina e tranqueira

Pessoas mais polidas, educadas, humildes, do que os irmãos Cruz Bandeira – Otair, Delvi, Idelvan e Juraci – que militaram no fute¬bol do Mato Grosso indiviso entre 1957 e 1964, os dois primeiros defendendo o Araguaia Esporte Clube e os outros dois o Coxim Esporte Clube, estavam para nascer. Mas gente mais encrenqueira e curva de rio do que os quatro provavel¬mente não passou pelo futebol mato-grossense naquele período.

Fora de campo, Otair, que continuou sendo chamado pelo apelido de Ica mesmo depois que virou desembargador e presidente do Tribunal de Justiça de Mato Grosso; o hoje promotor de Justiça aposentado Delvi; o advogado Idelvan e o então exator de rendas de Coxim, Juraci, eram um primor de pessoas. No entanto, quando trocavam suas vestes chiques que suas profissões lhes impu¬nham por camisa, calção, meião e chuteira para jogar bola, viravam, individual¬mente, um poço de ignorância, grosseria, estupidez, ironia…

O mais mala dos quatro era Ica, que mesmo já investido na função de juiz de Direito de Alto Araguaia, quando entrava em campo esquecia sua condi¬ção de magistrado e aprontava pra diabo. Era provocador, insolente e briguento. Alto e forte como um touro, se precisasse, saía na porrada com adversários, sem se importar em que chão estava pisando…

Em 1961 ou 62 – Pedro Lima não se lembra exatamente o ano – o AEC foi disputar um amistoso com um time de Mineiros, cuja população sempre re-cebia muito bem os alto-araguaienses. Para variar, Ica, que raramente jogava uma partida inteira, porque era sempre expulso de campo, criou uma confusão tão grande que o juiz suspendeu o jogo quando eram decorridos apenas 20 minutos.

Para azar dos defensores do “Panterão”, Ica foi se envolver logo com um jogador de uma família numerosa de baianos que viviam em Mineiros. Os homens da cidade não entraram em campo – nos velhos tempos não existia alambrado para proteger os jogadores – mas mandaram suas mulheres e namo¬radas fazer suas vezes. Elas obedeceram à ordem com vontade. E só pararam de bater nos jogadores do “Pantera do Leste” quando suas sombrinhas estavam em frangalhos…

– Naquele dia nós apanhamos pra valer. Mas a confusão, como sempre, acabou em festa. Poucas horas depois, estávamos todos juntos, inclusive muitas das nossas agressoras, tomando cerveja e dando gargalhadas, com as lembranças da surra de sombrinhas que tínhamos levado – recorda Pedro Lima.

Em Rio Verde, também em Goiás, em outro jogo Ica meteu seus com¬panheiros em outra confusão daquelas. Revoltado com as molecagens que Ica estava aprontando, enchendo o saco de todo mundo, um torcedor conhecido por Altino Paraguaio entrou em campo dando tiros de revólver para cima. Foi aquela correria. Pelo menos dessa vez os jogadores de Alto Araguaia não entra¬ram na taca…

Ica, Delvi, Idelvan e Juraci eram tão tranqueiras quando jogavam bola que às vezes procuravam armar confusão entre eles mesmos. Como aconteceu em 1963, quando o Araguaia Esporte Clube foi disputar um jogo com o Coxim, que tinha apenas dois jogadores da cidade – os irmãos Idelvan e Juraci – pois os outros eram do Operário e do Comercial, de Campo Grande.

Os quatro irmãos passaram os 90 minutos do jogo, que terminou empatado por 3×3, xingando uns aos outros. Era palavrão para tudo quanto era lado e o juiz não podia fazer nada se não ia sobrar – e como ia!… – para ele tam¬bém. “Você é um grande filho da puta, domina direito essa bola…” – “Filho da puta é você, eu te conheço muito bem, seu…” – foram as frases que a torcida mais ouviu durante todo o jogo…

Como se os quatro não fossem filhos de uma mesma e honradíssima mãe…

PS – Capítulo do livro Folclore da bola (volume 2 do Casos de todos os tempos) e desmembrado em três capítulos: futebol, arbitragem e radialismo,  que está na editora à espera da publicação pelo jornalista, escritor e professor de Educação Física Nelson Severino.
A obra, ambientada em Mato Grosso, focaliza personagens do esporte e do jornalismo esportivo.
Aposentado e residindo em Várzea Grande, Nelson Severino se dedica a escrever livros. Em breve terá novo lançamento.
Em Mato Grosso o autor é uma das referências do jornalismo, profissão à qual se dedicou com seriedade e profissionalismo durante décadas, sem se deixar seduzir por políticos e poderosos, atuando em jornais e revistas regionais, e na condição de correspondente de grandes jornais do eixo Rio-São Paulo. 

 

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