Os heróis que espalharam a capoeira pelo mundo – e influenciaram até o breaking
João Fellet e Felix Lima
Role, Enviados da BBC News Brasil a Salvador
O Brasil não terá representantes na disputa de breaking nos Jogos de Paris, mas capoeiristas brasileiros tiveram um papel importante na consolidação do esporte que fará sua estreia em Olimpíadas nesta sexta-feira (9/8).
No fim dos anos 1970 e início dos 1980, os capoeiristas baianos Jelon Vieira e Loremil Machado viviam em Nova York, onde davam aulas de capoeira e se apresentavam em shows.
Uma amiga então os convidou a se exibir em uma escola pública no Bronx, bairro nova-iorquino considerado o berço moderno do breaking.
“Era uma área bem perigosa”, conta à BBC Jelon Vieira, hoje com 71 anos. Ele diz que os alunos – na maioria negros ou latinos praticantes de breaking – assistiram em êxtase à apresentação de capoeira, misto de dança e luta legado por africanos escravizados e seus descendentes no Brasil.
Jelon diz que os estudantes ficaram impressionados com os movimentos e, após a exibição, tentaram imitá-los.
Começava ali um intercâmbio que duraria muitos anos e que, segundo Jelon, fez com que o breaking incorporasse vários movimentos da capoeira, entre os quais o pião de cabeça, o relógio e o pião de mão (nos quais o praticante rodopia apoiado em diferentes partes do corpo).
Apresentação de breaking no bairro do Bronx, em Nova York, em 1984
A relação entre a capoeira e o breaking já foi citada pelo jornal The New York Times. Em 1989, Jon Pareles, chefe da editoria de artes do jornal, definiu a capoeira como “uma dança de artes marciais que antecipou o break dancing”.
Mestre Jelon diz que chegou a ser descrito pela imprensa americana como o “pai do breaking”, mas rejeita o título. “Eu não criei o break dance, mas contribuímos com ele”, diz.
Para Jelon, ainda que o breaking moderno tenha surgido em Nova York, o esporte é “mais um presente da África para o mundo”.
Ele diz ter reforçado sua convicção ao ver o documentário “The North Rejoices”, de 1959. Nele, moradores de uma aldeia na Nigéria executam vários movimentos semelhantes aos do breaking moderno.
Sucesso da capoeira em Nova York
Mas o papel da capoeira em Nova York vai bem além de sua influência no breaking. Uma pesquisa no Google hoje revela a existência de 22 academias de capoeira na cidade.
Além disso, várias escolas públicas nova-iorquinas oferecem a modalidade – ago incomum em cidades brasileiras, segundo mestre Jelon.
Ele conta que a capoeira lhe abriu portas para que também se tornasse coreógrafo nos EUA. Jelon é fundador de uma companhia de dança (DanceBrazil), e já coreografou musicais da Broadway e filmes de Hollywood, como Brenda Starr (1989), estrelado por Brooke Shields, e Boomerang (1992), com Eddie Murphy.
Grandes feitos para quem chegou a Nova York aos 22 anos de idade sem falar inglês.
Nascido em Santo Amaro, no Recôncavo Baiano, e criado por uma mulher negra, viúva e mãe de sete filhos, Jelon aprendeu capoeira aos 10 anos no Engenho Velho de Brotas, bairro de Salvador para onde a família se mudou na sua infância.
Até que, durante a ditadura militar (1964-1985), uma notícia o chacoalhou: três amigos desapareceram após colar panfletos políticos nas ruas para ganhar uns trocados.
“Eu me revoltei com aquilo, disse ‘não quero mais ficar no Brasil’. Eu lembrei que eu era capoeirista, e aquela era a minha única salvação”, conta.
Jelon sabia de um grupo em Salvador que estava contratando capoeiristas para apresentações de cultura afro-brasileira no exterior, o Viva Bahia, coordenado pela etnomusicóloga Emília Biancardi.
Ele fez um teste e passou. Em 1974, integrou uma expedição que tinha entre seus integrantes um dos capoeiristas mais conhecidos do Brasil na época, mestre João Grande, com quem seu caminho voltaria a se cruzar adiante.
A viagem incluiu apresentações em vários países da Europa e no Irã, na época uma monarquia comandada pelo xá Reza Pahlavi (1919-1980). “Fizemos um show para família real e convidados. Era coisa de sonhos”, ele recorda.
No dia seguinte à apresentação para o xá, Jelon conta que o grupo se exibiu para o “povão” iraniano em um teatro lotado. Ele diz que o público foi ao delírio quando os capoeiristas entraram em cena. “Eles não estavam acostumados a ver homens sem camisa e ficaram doidos”, conta.
A viagem, porém, quase termina em tragédia: uma dançarina do grupo foi apedrejada ao caminhar por Teerã com um vestido que deixava o corpo à mostra. Jelon diz que a jovem chegou a ser hospitalizada por causa dos ferimentos, mas se recuperou.
Primeira escola de capoeira fora do Brasil
Depois da viagem, Jelon deixou o grupo Viva Bahia e foi tentar a sorte em Nova York. Em 1975, ele abriu no bairro Soho, na ilha de Manhattan, o espaço que ele considera “a primeira escola de capoeira fora do Brasil”.
Foi o início de uma carreira de sucesso – e que lhe deu uma condição financeira a que poucos mestres de capoeira poderiam almejar no Brasil.
A BBC News Brasil entrevistou Jelon Vieira em Salvador em janeiro de 2024, durante o 5º Rede Capoeira, evento que homenageou mestres de capoeira com papel central na história da modalidade.
Como Jelon, alguns dos homenageados decidiram deixar o Brasil em busca de melhores condições. E para um antigo companheiro de Jelon ali presente, a viagem à Bahia tinha um sabor especial.
O retorno de João Grande
A tarde caía em Salvador, e uma multidão de capoeiristas aguardava em uma tenda ao lado do Mercado Modelo por uma das atividades mais esperadas do evento, classificado pelos organizadores como “o maior encontro de capoeira de todos os tempos”.
“Filho, vem ver, é mestre João Grande”, uma mulher sussurrou enquanto o público abria passagem para um homem negro com as costas envergadas pela idade.
Aos 91 anos, João Grande voltava para a mesma Bahia que o “expulsara” na década de 90, quando, incapaz de sobreviver da capoeira ali, seguiu os passos de Jelon Vieira e também se mudou para os Estados Unidos.
Desta vez, porém, ele era a grande estrela do evento – e motivo pelo qual muitos haviam viajado de diferentes partes do país até Salvador. Queriam ver, em carne e osso, um personagem que só conheciam de filmes, livros e músicas.
Ao lado de alunos estrangeiros, todos fluentes em português, João Grande deu uma oficina ao grupo. Movia-se com agilidade, indicando com as mãos como os movimentos deveriam ser feitos.
Depois, sentou-se e respondeu com sorrisos e acenos às homenagens dos participantes.
“Parece que estou no céu”, ele disse à BBC dias depois, na casa espaçosa em Salvador em que se hospedou durante a estadia.
“Todos me tratam bem aqui, todos me ajudam”, afirmou. Um cenário bastante distinto do que ele enfrentara ao longo de boa parte de sua vida.
Nascido em Itagi, no interior da Bahia, em 1933, João Oliveira dos Santos se mudou para Salvador na juventude e trabalhou como empregado doméstico de uma família.
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