Excursão dos rolos

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A honrosa classificação que o Operário havia conquistado no Campeonato Brasileiro de 1973 levou o clube de Campo Grande a deduzir, com toda razão, que sua participação no certame do ano seguinte estava garantida. Afinal, ficar em 17° lugar num campeonato do porte do Brasileirão não era para qualquer time. Por isso, o Operário começou a reforçar a equipe, fazendo contratações para enfrentar a magna competição.
Se para os clubes era uma grande honra participar de um dos maiores campeonatos de futebol do mundo, para os torcedores era a materialização de um sonho de ver em campo jogadores da estirpe de Pelé, Tostão, Rivelino, Gérson, Everaldo, Jairzinho, Clodoaldo, Wilson Piazza, Félix, Marinho, Brito, Palhinha, Zé Carlos… Mas, para decepção dos operarianos, a Confederação Brasileira de Desportos convidou foi o Comercial, o grande rival do Operário, para disputar o Brasileiro de 1974. Acontece que a CBD convidava quem bem entendia, e como o presidente da entidade, o poderoso João Havelange, tinha um grande amigo na diretoria do Comercial, não teve dúvidas em deixar o Operário de lado…

 

Dias antes do Comercial ter sido escolhido pela CBD, o presidente Agripino Bonilha Filho foi a Campo Grande resolver um problema relacionado à FMD e acabou se desentendendo com o presidente do Operário, o advogado Rubens Salim Saad. Furioso, Saad empurrou Bonilha que caiu sentado, levantou-se rapidamente e partiu com tudo para cima do agressor, mas pessoas que presenciaram a cena, no Estádio “Pedro Pedrossian”, impediram que os dois saíssem para a porrada.

Com a decisão de Havelange, uma comissão do Operário, com Saad à frente, veio a Cuiabá pedir para Bonilha Filho convencer o presidente da CBD a voltar atrás. Da reunião, sem a participação de Saad, que Bonilha recusou-se a receber em sua sala, ficou acertado que o presidente da FMD iria imediatamente ao Rio de Janeiro conversar com o seu padrinho para ver se a CBD convidava também o Operário.

E lá se foi Bonilha para o Rio. Não teve jeito não, pois Havelange não voltou atrás. As sugestões que lhe foram apresentadas por Bonilha para contemporizar a situação nem foram levadas em consideração por Havelange. O convite ao Comercial estava feito e fim de papo.

Depois de muita insistência de Bonilha, Havelange concordou em assinar um documento que garantia ao Operário a única vaga de Mato Grosso no campeonato de 75. Mas deixou bem claro também que para o ano seguinte a entidade já tinha seu convidado: o Comercial de novo…

Para amenizar a revolta do Operário, a CBD se comprometeu a autorizar uma excursão do clube para o exterior. Naqueles tempos, havia muitas restrições a saídas de times de futebol do Brasil, por causa da sacanagem de maus empresários que organizavam longas temporadas pelo exterior, embol-savam o dinheiro e acabavam deixando a boleirada abandonada, inclusive pas¬sando fome pelo mundo afora…
Coube ao endinheirado empresário de futebol Elias Zachur, homem de confiança da CBD, organizar a excursão do Operário. Zachur escolheu logo o continente africano para uma temporada que duraria no mínimo um mês.

Para chefiar a delegação no giro pelo gigantesco continente, o Operário escolheu Irineu Farina, um experiente empresário do ramo imobiliário em Campo Grande. E decidiu levar também, como convidado de honra, o presidente Bonilha Filho. O convite a Bonilha foi uma exigência dos jogadores operarianos, que sabiam da sua fama de meio durão, o que era certeza de que não iam passar vexames fora do Brasil.

Para aceitar o convite, Bonilha fez uma imposição: ele só acompanharia a delegação se pudesse levar sua mulher Vanda e o médico Farina também a dele. O Operário concordou e começaram os preparativos para a viagem do primeiro time de Mato Grosso a excursionar pelo exterior.

Antes do embarque houve uma reunião entre a direção do Operário, jogadores, Farina e Bonilha, para a definição de alguns detalhes da viagem. Entre eles, a questão da gratificação dos jogadores. Ficou decidido que os jogadores receberiam, cada um, de Zachur, 200 dólares por vitórias. O empresário não pagaria prêmios por empates, mas o clube assumia a responsabilidade de gratificar os jogadores com 100 dólares cada um.

Tudo definido, lá se foi o Operário para a África, levando um irmão de Elias Zachur, Tony Zachur, que era poliglota e serviria como intérprete da delegação, e o jornalista Sérgio Neves. A presença de um jornalista em excursões de clubes de futebol passou a ser obrigatória para acabar com a safadeza de empresários inescrupulosos.

O primeiro jogo do Operário estava marcado para Johannesburgo, contra a seleção da África do Sul. O “apartheid”, a política segregacionista da África do Sul, estava no auge. A estreia do Operário estava marcada uma quarta-feira, porém a delegação chegou à capital sul-africana num domingo, três dias antes do jogo.
No desembarque, o intérprete que recepcionou o Operário transmitiu à chefia da delegação algumas instruções que deviam ser seguidas rigorosamente: os jogadores de cor não poderiam sair do hotel, fazer refeições no restaurante dos brancos e nem pensar em se aproximar da piscina dos hóspedes. Foi um choque para todo mundo.

Quando o intérprete terminou de falar, notando que o chefe da delegação, Irineu Farina, estava indeciso, Bonilha tomou a palavra e foi curto e grosso: “O Operário não vai entrar em campo… o jogo está cancelado!”
O intérprete ainda tentou argumentar com Bonilha que o jogo tinha que ser realizado, porém o presidente da FMD manteve a palavra: “Eu represento neste momento uma entidade esportiva de um país que não aceita discriminação racial. Se vocês querem praticar racismo entre vocês, não é problema nosso. Mas contra jogadores brasileiros, não mesmo! Não vai ter jogo…”

A decisão de Bonilha retardou a saída da delegação do aeroporto de Johanessburgo. E em vez de ser alojada num hotel cinco estrelas, como rezava o contrato, a delegação foi mandada para um hotel mixuruca, que mais parecia pensão de imediações de estação rodoviária do interior.

Na segunda-feira logo cedo, Havelange, que já havia tomado conhecimento, por intermédio de Tony Zachur, do pampeiro armado por Bonilha, ligou para o afilhado para pedir que ele reconsiderasse a decisão para não criar um eventual problema diplomático entre Brasil e África do Sul.

– Não tem conversa não, presidente! O jogo está cancelado…

O cônsul do Brasil em Johannesburgo também tentou fazer Bonilha voltar atrás, mas perdeu tempo. Bonilha foi levado para conversar com o embaixador do Brasil em Johannesburgo, entretanto manteve a posição assumida no aeroporto. E não teve jogo mesmo.

Depois de dois dias de muita confusão, os dirigentes do futebol sul-africano conseguiram colocar a delegação operariana num avião com destino à África negra para sequência de uma excursão que não havia sido iniciada. Da passagem pela África do Sul, restou um grande prejuízo para Zachur, pois, sem jogo, os dirigentes do futebol sul-africano não cumpriram uma vírgula do contrato relativo à apresentação do Operário em Johannesburgo.

Enquanto permaneceu em Johannesburgo, a delegação ficou junto, sem separação de brancos e negros. Mas até policiais foram espalhados pelo hotel para impedir que os jogadores negros saíssem pelas ruas da cidade.

Da África do Sul a delegação seguiu para a cidade de Nindola, onde ficou baseada para disputar cinco jogos pelo continente africano contra a seleção de Zâmbia. Nos quatro jogos realizados no interior, o Operário venceu dois e a seleção de Zâmbia dois.

Operário e Zâmbia foram para a decisão de um troféu no principal estádio da capital africana, Lusaka, com direito à presença do presidente Kenneth Kuanda. Casa cheia e o Operário dando um show de bola no adversário. Tanto que o time operariano virou o primeiro tempo com 3×0 no placar.

Começou o segundo tempo e o Operário mandando no jogo. Aí o juiz decidiu, não se sabe se por conta própria ou cumprindo ordens superiores para agradar o presidente zambiano, mudar o resultado do jogo. Marcava faltas absurdas contra o Operário e nada contra a seleção. O goleiro operariano terminou o jogo todo ensanguentado de tanto levar chutes no rosto dos jogadores africanos.

O Operário teve três jogadores expulsos na etapa final. Com a vantagem numérica, os africanos foram fazendo gols até chegarem ao empate. Percebendo que o jogo só seria encerrado quando Zâmbia marcasse o gol da vitória, os jogadores que estavam no banco começaram a gritar: “Deixa eles marcar mais um…” “Faz um pênalti…”

O segundo tempo já tinha uns 100 minutos quando Zâmbia fez o quarto gol e aí o jogo acabou com muita festa pelos jogadores da seleção e da torcida…

Cumprida a primeira parte da excursão, o Operário saiu de sua base em Nindola para realizar mais quatro jogos por campos africanos. Jogou inclusive em Uganda, cujo presidente, Idi Amin Dada, o homem das 40 esposas, era, naquela época, o mais sanguinário ditador de plantão do mundo. Como se tratava de amistosos sem nenhuma expressão, Bonilha Filho afastou-se temporariamente da delegação e junto com a esposa foi conhecer alguns paraísos turísticos como as Ilhas Maurício, algumas cidades gregas e Paris.

Quando Bonilha se juntou de novo à delegação operariana, alguns dias depois, em Beirute, no Oriente Médio, que, antes de ser destruída pelos americanos na tresloucada guerra contra o Iraque, era uma das mais belas cidades do mundo, encontrou um clima tenso. Motivo: o Operário tinha empatado os quatro amistosos que havia disputado na sequência da excursão pela África e os jogadores queriam receber o dinheiro da gratificação.

Houve uma reunião entre a chefia da delegação, o técnico Diede Lameiro e os jogadores. E, mais uma vez, sobrou para Bonilha, que teve que explicar que os prêmios por empates o Operário pagaria quando a delegação retornasse ao Brasil e o clube recebesse o dinheiro da excursão. “Foi isso que ficou combinado e será cumprido. Eu vou me empenhar pessoalmente para que vocês recebam os seus prêmios…” – garantiu Bonilha Filho.

– É mentira dele, ele é cartola. E todo cartola é safado, sacana, vagabundo, mentiroso – vociferou o atacante Careca, que era do Botafogo, do Rio de Janeiro, e estava emprestado ao Operário.

A reação de Careca causou grande mal-estar entre os presentes. Depois de um rápido bate-boca, Bonilha, com a calma que lhe é peculiar, sentenciou, para surpresa dos presentes: “O senhor está desligado da delegação. Pode fazer as malas para retornar para o Brasil…”

Careca ainda tentou reverter a situação, porém Bonilha manteve sua posição: “O senhor não desrespeitou só a mim, mas muito mais à entidade esportiva que eu represento aqui. E tem mais: quando eu retornar ao Brasil vou lhe arrumar uma suspensão para o senhor nunca mais jogar bola como profissional…”

À noite, enquanto Bonilha jantava no restaurante do hotel, chegou junto à mesa em que ele estava com Irineu Farina uma comissão de jogadores para lhe pedir desculpas pelo que tinha acontecido horas antes. Careca só faltou ajoelhar-se e se desmanchar em desculpas pelas agressões verbais que havia dirigido ao presidente da FMD.

Depois de refletir no que poderia acontecer dali por diante com o Operário na continuidade de sua excursão por gramados dos Emirados Árabes, pois Careca era o único jogador do time operariano que estava fazendo gols, Bonilha anunciou que reconsiderava sua decisão. Foi um alívio geral. Bonilha aproveitou a ocasião para fazer outro comunicado:

– Neste momento estou me desligando da delegação. Depois de tudo o que aconteceu e com a decisão que tomei agora de não punir o Careca, não tenho mais condições morais de continuar com o grupo de vocês…

No outro dia Bonilha e esposa pegaram suas malas e foram conhecer alguns países do Oriente Médio e da Europa. Mas com o dinheiro deles e não como convidados do Operário…

PS – Reproduzido do livro Casos de todos os tempos Folclore do futebol de Mato Grosso, do jornalista e professor de Educação Física Nelson Severino