Bóe-Bororo e Rondonópolis

© PAULO ISAAC

Heráclito foi um filósofo grego, nascido em Éfeso, no ano de 540 a.C. É dele a formulação teórica e metodológica da dialética, da qual eu formulei a minha tese de doutorado denominada Transpermanências nos Modos de Existir de Pessoas, Sociedades e todos os Seres.

Grosso modo, todos os seres passam incessantemente pelo processo de transpermanência, ou seja, existem mudanças nas permanências e permanências nas mudanças. E, como nos mostrou Heráclito: o rio é outro e é o mesmo. Apesar de todas as mudanças, cada Ser se identifica pelo que se mantém de essencial em seu modo de existir.

Desse modo, o antigo rio Pogubo essencialmente é o mesmo atual rio Vermelho, que serve Rondonópolis. Não é o mesmo, entretanto, em muitos aspectos, tanto formais quanto ambientais.

Quando, em 1915, o lugar que era densamente ocupado pela etnia Bóe-Bororo passou a ser ocupado mais intensamente por imigrantes de outras regiões, ele foi denominado Povoamento do Rio Vermelho, o mesmo nome que fora dado pelos colonizadores ao rio. Para os Bóe-Bororo, contudo, o rio continuou a ser chamado de Pogubo e o povoamento foi por eles denominado Arareiao Paru.

O primeiro registro histórico de ocupação dessa região, localizada na bacia hidrográfica do rio São Lourenço, data de 1875 com a instalação do primeiro destacamento militar e posterior chegada dos primeiros colonizadores goianos, em 1902.

Não mudou apenas a paisagem do lugar. Mudaram também as relações sociais e de produção. Ocorreu a coexistência de várias culturas e línguas e foram introduzidas novas formas de manejo do meio ambiente. O lugar impactou os colonizadores e eles impactaram o lugar e o seu povo originário: os Bóe-Bororo.

Esse movimento dinâmico do ecossistema – visualizado nas mudanças das paisagens naturais e antrópicas e sentido nas contradições econômicas e socioculturais – é que faz essa história de Rondonópolis ser rica e apaixonante.

Ela é uma história triste, também, porque registra a expropriação de um povo indígena de suas terras tradicionais e de parte de sua cultura, além da violência contra os Bóe-Bororo e muitos imigrantes pobres, que foram espoliados pelos agentes do Estado e grileiros de terras que se fixaram na região.

Este artigo tomou como mote da história de Rondonópolis o rio Pobugo (Vermelho) e o povo indígena Bóe-Bororo porque eles são símbolos identitários desse lugar de exuberantes matas de cerrados e cerradões que se transformaram em propriedades agrícolas e pastoris. Quanto ao rio Rio Pogubo, ele se transformou historicamente em Rio Vermelho, de barro e de sangue.

Na língua Bóe-Bororo, Rio Pogubo significa rio habitado pelo passarinho de cabeça vermelha. Ele é afluente do Pogubo Cereu, que é o nome originário do atual São Lourenço.

O Córrego Arareau desemboca no rio Vermelho onde é, atualmente, o Parque das Águas, em Rondonópolis. Ele está criminosamente abandonado pelo poder público municipal, mas continua resistindo pela força da sua natureza. O fato importante é que, nas primeiras décadas do século XX, suas margens eram densamente povoadas por aldeias Bóe-Bororo.

A população indígena foi expropriada dessa vasta região dos Córrego Arareau, rio Vermelho e seus outros afluentes, e foi encurralada em uma reserva indígena denominada Tadarimana, atualmente com 9.785 hectares e a presença de 623 pessoas.

Tudo isso é passado?

Não, não é!

71 anos depois da emancipação política e criação do município de Rondonópolis e 149 anos após a instalação do primeiro edifício colonialista militar nas terras tradicionais Bóe-Bororo, aumentou significativamente o número de colonizadores e reduziu drasticamente a quantidade de pessoas indígenas.

Porém, os Bóe-Bororo continuam fazendo parte da paisagem de Rondonópolis, mantém-se na Terra Indígena Tadarimana e lutam pela sua inclusão social. Apesar da discriminação e do racismo estrutural, eles procuram interagir com as novas tecnologias, com as instituições globais e com os outros povos da sociedade de contato.

Atualmente, a educação escolar e a saúde indígena são servidas por professores e auxiliares de enfermagem da própria etnia. Existem professores Bóe-Bororo formados em nível de mestrado e outros fazendo cursos superiores nas universidades federais de Rondonópolis, Mato Grosso e Goiás. As terras indígenas Bóe-Bororo de Tadarimana, Córrego Grande, Merúri e Jarudóri possuem associações comunitárias indígenas com CNPJ, inclusive de mulheres com o objetivo de inserir os jovens no sistema produtivo e na defesa do meio ambiente de forma sustentável.

Observem que, o tempo todo, utilizamos o termo Bóe-Bororo. Desde o ano de 1996 essa etnia passou a se autodenominar com esse binômio.

Bóe é a maneira como eles se autodenominam na sua linguagem tradicional otuké. Bororo é o nome que lhes foi atribuído pelo colonizador Augusto de Leverger – O Barão de Melgaço, em 1851.

A identidade dessa etnia foi historicamente distorcida e Bororo tornou-se um nome mundialmente utilizado por cientistas, por outras etnias e reconhecido pelo Estado brasileiro. Diante da impossibilidade de voltar ao uso originário do nome Bóe na sociedade de contato, líderes de todas as comunidades dessa etnia decidiram pelo uso do termo composto Bóe-Bororo para se autodenominarem, em 1996, durante um seminário de Educação Escolar Indígena realizado em Tadarimana.

Nesse processo, com tantas transpermanências ocorridas ao longo da história, o que permaneceu nas relações interétnicas entre Bóe-Bororo e a sociedade colonizadora?

Permaneceu a essência da cultura dessa etnia, a sua luta pela sobrevivência em espaços reduzidos de terras, a existência de 1821 (um mil, oitocentos e vinte e um) habitantes em Mato Grosso, a inclusão dos Bóe-Bororo nas políticas públicas da União, dos estados e municípios e a força e sabedoria de um povo que resiste, resiste e resiste!

*Paulo Augusto Mario Isaac – Membro da Comunidade Indígena Bóe-Bororo, cujo nome indígena é Juredugo Kudoro Kaworo. É psicoterapeuta, antropólogo, etnógrafo, historiador e professor aposentado da UFMT. Doutor Honóris Causa da Universidade Federal de Rondonópolis. Membro da ARL – Academia Rondonopolitana de Letras, ocupante da cadeira nº 5, cujo patrono é do Dr. João Antônio Neto.

Fotos:

Acervo Professor Paulo Isaac

Infografia:

Marco Antônio Raimundo

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