A amplitude de Ainda estou aqui

Eduardo Gomes

@andradeeduardogomes

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“… Deixa voltar o JK daqueles dias /

Quero de novo votar… /

Uma paródia política da música Tristeza, de Haroldo Lobo e Miltinho Tristeza, nas paradas com a interpretação de Taiguara, era o protesto pacífico de estudantes ginasianos nas calçadas de Governador Valadares nos primeiros anos do regime militar instalado em 1964. A juventude clamava em outra parte da famosa melodia:

“… Castelo, por favor vá embora

/ Nossa gente te implora…/. Misturado a eles, que eram meus colegas de classe ou contemporâneos de colégio, ouvia aquilo com preocupação, pois defendia o golpe chamando-o de Revolução Redentora. Aquele período e o avançar do mesmo veio-me à mente por conta de uma estatueta dourada chamada Oscar – inédita para o Brasil – que bota em evidência a maestria de Fernanda Torres e a genialidade de Walter Salles, em Ainda estou aqui, o filme inspirado no livro de igual nome, escrito por Marcelo Rubens Paiva, que revolve as entranhas do patropi e que me leva a uma mea culpa.

Jango e a reforma agrária na lei ou na marra

Das páginas da obra de Marcelo, filho do engenheiro civil e deputado federal cassado, Rubens Paiva, Walter Salles extraiu a película que concorre ao Oscar de Melhor Filme, Melhor Filme Internacional e de Melhor Atriz – com Fernanda Torres. A perspectiva pelo faturamento dos três prêmios, de dois ou de um, deixa o Brasil em êxtase. Torço pelo tri, mas o enredo da obra é a grande conquista da nacionalidade brasileira pelo ontem e o turvo agora.

A telona será uma imensa janela aberta ao ontem, para que possamos conhecer melhor o período ditatorial que nos é apresentado com duas versões passionais que por todos os meios tentam ocultar a verdade que macula ambas as partes envolvidas, como é o caso Rubens Paiva que tem as digitais dos militares e policiais ao estilo da organização paramilitar chamada de Comando de Caças aos Comunistas (CCC).

Em 1964 o mundo estava polarizado entre a democracia dos Estados Unidos e o comunismo da União Soviética e não menos pela guerra fria que travavam. O gigantismo brasileiro seduzia Washington e Moscou. Nós, os brasileiros, sabíamos pouco sobre os fatos nacionais e do exterior. A população era pequena, com predominância litorânea e tínhamos grandes vazios demográficos. Um reduzido número de comunistas, em parte moldado pela Universidade da Amizade dos Povos Patrice Lumumba, aos pés do Kremlin, recebia jovens brasileiros e os preparava para a abertura dos caminhos comunistas. Sob permanente orientação dos americanos, o Exército Brasileiro acompanhava a movimentação dos camaradas. Jango Goulart estava no poder e seu coração não batia, mas ecoava como sonoridade da balalaika. Havia risco de tentativa de comunização e Jango deixava isso bem claro, com sua política de uso do solo com o bordão Reforma agrária na lei ou na marra.

Castelo prorrogou seu mandato

O Congresso Nacional, como sempre e agora, era um peso morto. Com todas as vênias democráticas era preciso destituir o presidente em nome da contenção do comunismo, e eleger indiretamente seu sucessor, já que não havia vice-presidente. O eleito – pelo rito – permaneceria no cargo até 1965, que seria ano de eleição presidencial. A Presidência foi declarada vaga, pois havia a versão de que Jango estaria no exílio uruguaio, e o deputado Ranieri Mazzilli (PSD/SP), que presidia a Câmara, assumiu constitucionalmente a chefia do Estado, até que o Congresso elegesse alguém para concluir o mandato em aberto.

O marechal Castelo Branco eleito pelo Congresso – inclusive com o voto de Ulysses Guimarães – assegurou que faria a transição democraticamente, mas não o fez – seu mandato foi prorrogado e o sonho com JK 65 foi definitivamente sepultado.

Gilney entrou para a guerrilha

Sem eleição presidencial, a esquerda moldada em Moscou iniciou ações terroristas, das quais participou, dentre outros, Gilney Viana (PT), que foi deputado estadual e deputado federal por Mato Grosso. As duas correntes tiveram sangue derramado e o derramaram, por falta de ambiente democrático.

Nas eleições gerais (dentro do possível, sem voto para presidente e governador) de 1972 na pequena cidade mineira de Alpercata, fui candidato a vereador pela Arena – mas já estava radicado em Mato Grosso. Mesmo com a estranha política de correligionários pedindo a eleitores que queriam honrar-me com o voto, para que votassem em outros nomes do partido, “porque ele já está eleito”, recebi votação consagradora, mas não tomei posse – fui induzido ao ato vergonhoso de não assumir o cargo e em momento oportuno falarei sobre essa situação. Jovem, num mundo sem as conexões de agora, defendi a bandeira governista, quando minha faixa etária protestava por democracia e fazia das tripas coração pela liberdade.

Muitos anos se passaram até que eu pudesse compreender o absurdo da ideia que defendia. Não se concebe o Estado assassino, torturador, ditatorial. Essa é a verdade que leva-me ao mea culpa.

Os anos cinzentos terminaram. O Brasil é democrático e temos ferramentas institucionais fortes para a defesa da democracia. Como nada é perfeito, nos falta liderança nacional, mas isso pela omissão da maioria, inclusive em Mato Grosso, onde boca não se abre em protesto contra os donos do poder local. Se não temos boa representação (com as exceções de praxe) como podemos exigir liderança de excelência em Brasília?


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Vejam: em Mato Grosso o crime organizado avança cada vez mais sobre o vácuo do poder político. A saúde pública é desumana e o verdadeiro médico nas pequenas e médias cidades é o Dr. Ambulância. A Educação é um fracasso e o governador Mauro Mendes é visto com desconfiança pela comunidade escolar; recentemente a Secretaria de Educação anunciou que transferiria os 1.500 alunos do Liceu Cuiabano Dona Maria de Arruda Müller para outras escolas, para que aquela unidade escolar fosse reformada – houve muita gritaria, porque a descrença no governo é grande, e aquilo poderia ser uma manobra para o fechamento daquela escola, a exemplo do que aconteceu com tantas outras Mato Grosso afora.

Que a busca pelo Oscar seja mais um capítulo da anistia ampla, geral e irrestrita que deve ser nossa permanente companhia, mas sem revanchismo, pois se assim for, não se pode falar em anistiamento. No caso Rubens Paiva não se trata de sepultar um crime, mas de relembrá-lo como refêrencia didática contra ditadura, mas sem permitir que o mesmo reabra feridas nacionais. A estatueta será uma forma de dizer com amplitude o nome do título: Ainda estou aqui, mostrando o estabelecimento da verdade, com dor, mas sem mágoa ou rancor.

Tenhamos em conta que todos somos um pouco da família Paiva e que muito de nós também são cúmplices dos carrascos que prenderam, torturaram, mataram e esconderam o corpo de Rubens Paiva. Deixemos as cicatrizes ao tempo, que é o melhor remédio. No entanto, nem por isso podemos nos esquecer de 1964 nem nos deixar arrastar por Lula da Silva e Jair Bolsonaro – ambos capazes de nos empurrar a um amargo ciclo como o sombrio período da ditadura.

Não nos inspiremos em José Riva

Nós mato-grossenses de berço ou por adoção temos poucas opções políticas, mas as temos. Não podemos nos inspirar em José Riva, Silval Barbosa, Humberto Bosaipo e  Emanuel Pinheiro.

Porém, numa visão ampla sobre o Estado, devemos buscar exemplos inspiradores em mato-grossenses natos ou não, que estiveram ou estão entre nós. Miremos no grande vulto nacional, nascido em Mimoso, no Pantanal, Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon; nos pastores Norberto Schwantes e Gustavo Bringsken; nos padres Lothar, João Salarini, João Henning e Miguel Angel Rodas Ortiz; no monsenhor Celso Duca; nas freiras Irmã Luiza, Irmã Vita e Irmã Adelis; nos médicos Dr. Sabino Vieira, Dr. Jorge Yanai, Dr. Mário Nihshikawa e Dr. Gabriel Novis Neves; nos líderes quilombolas Teresa de Benguela e Antônio Mulato; nos caciques Raoni Metuktire, João da Evangelina, Bedjai Txucarramãe e João Garimpeiro; nos pesquisadores agronômicos Hortêncio Paro, Dario Hiromoto, Valter José Peters, Antonimar Marinho dos Santos, João Osmar de Oliveira e Ângelo Maronezzi; na altivez política de Antônio Paulo da Costa Bilego, Moisés Mendes Martins Júnior, Roberto Campos, Gilson de Barros, Frederico Campos, Vilma Moreira dos Santos, Filinto Müller, Daniel Martins de Moura, Júlio Domingos de Campos – o Fiote, Luiz Lopes Martinez, Carmen Martines, Cezalpino Mendes Teixeira – o Pitucha, José Queiroz e de Ilbert Effting – o Alemão; no heroísmo do marechal Antônio Maria Coelho e do Barão de Melgaço; no profissionalismo do coronel EB José Meirelles;  nas professoras Luzia Guimarães, Elza Queiroz, Elby Milhomem, Analy Polizel e Edna Ziliani; nas promotoras de Justiça Ivonete Bernardes e Joana Maria Bortoni Ninis; na visão empreendedora de Olacyr de Moraes, João Petroni, Hilton Campos, Sango Kuramoti, Marino Franz, João Belmonte Aigner, Yassutaro Matsubara, Iosihua Matsubara – o Paulo Japonês e de Archimedes Pereira Lima; na capacidade de sonhar de Maurício Tonhá, Adão Riograndino Mariano Salles, José Humberto Macedo, Antônio Paes de Barros – o Totó Paes, Adilson Domingos dos Reis, Manoel Esperidião da Costa Marques, Michel Leplus, Zulmira Andrade Canavarros, Munefumi Matsubara, Djalma Pimenta, Guilherme Meyer, Ênio Pipino, André Maggi, Ariosto da Riva, Zé Paraná, Claudino Francio, Otaviano Pivetta, Maria Dimpina Lobo Duarte, João Carlos de Souza Meirelles, Otávio Eckert, Daniel Meneghel, Antônio José da Silva, Rubens Rezende Peres, Alair Álvares Fernandes, José Aparecido Ribeiro, Raimundo Costa Filho, Severiano Neves, Manoel Pinheiro, João Augusto Capilé Júnior – o Sinjão, Lúcio Pereira da Luz, José Kara José, Gervásio Azevedo, Hermínio Ometto, Filinto Corrêa da Costa, Benedito Mário Tenuta, Sérgio Leão Monteiro e Antônio Domingos Debastiani; na literatura de Francisco de Aquino Correia – o Dom Aquino, Ricardo Guilherme Dicke e Gilson Lira; no estrategismo de Antônio Lourenço Teles Pires, Antônio Peixoto de Azevedo, Luiz Antônio Pagot e José Vieira Couto de Magalhães; no humor refinado de Liu Arruda; nas vozes de Bruna Viola, Vanessa da Mata, Lassimi Perrone, Sandro Lúcio e Roberto Lucialdo;  na segurança diferenciada proporcionada pelo coronel PM Adib Massad; no saxofone de Marinho Franco; na sanfona de Lídio Magalhães; no maestro Fabrício Carvalho; na atuação de Osvaldo Sobrinho pelo ensino universitário; nas defesas e nos gols de Rogério Ceni; na arte do futebol feminino de Ana Vitória; nas loucuras do motocross estilo livre de Joaninha; no fotojornalismo de Lázaro Papazian e Dinalte Miranda – o Tuiuiú; e na cidadania de Jacinto Silva, Maria de Arruda Müller, Domingas Leonor, Manao Ninomiya, José Salmen Hanze – o Zé Turquinho, Jupia de Oliveira Mestre, Rosalina Maciel de Jesus – a Baiana, Maria do Bosco, Attílio Giordani e Antônio Alves da Silva – o Cacheado. Portanto, temos bons e maus exemplos, basta seguir os aconselháveis. Assim é a anistia que nos permite recuar em busca de reflexões, sem no entanto nos levar ao radicalismo, ao extremismo deixando-nos na cômoda situação de separar o joio do trigo por um caminhar seguro, sem, no entanto, nos esquecermos o papel que cada um desempenhou no contexto histórico.

Não nos deixemos liderar por figuras menores, em nome de supostas bandeiras de direita e esquerda, quando o país precisa de unidade, união, convergência.

Que o magnetismo do Oscar em disputa mostre ao Brasil, que anistia não pode ter retrocesso – nem mesmo no caso Rubens Paiva – e que precisa chegar ao agora, com todos os presos políticos ganhando liberdade, para que juntos, possamos construir o país que queremos, merecemos e precisamos, sem ruptura institucional clássica como em 1964, e maquiada, como hoje.

Do povo brasileiro para o brasileiro Rubens Paiva: Descanse em paz Ainda estou aqui

Que venha logo o país sem a corrupção que ditou regras nos governos anteriores do PT, de modo suprapartidário; e sem a prática de Bolsonaro no tocante a joias, compras de terrenos com pagamento em moeda corrente e sem pirotecnia de golpismo de estado amador. Que a 97ª edição do Oscar, em Los Angeles, seja um passo pela força da sétima arte em busca do país que nenhuma ditadura, regime ou culto à personalidade pode apagar.

Fernanda Torres, Walter Salles e a família Paiva são os verdadeiros prêmios conquistados pelo povo brasileiro, mas essa realidade não nos impede de torcer pela inédita conquista da estatueta dourada.

Fotos:

1 – Globo

2, 3 e 6 – Biblioteca Nacional

4 – PT

5 – ALMT

7 – Governo de Mato Grosso

8 – Acervo familiar

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