40 Anos – A divisão e as sociedades indígenas

 

O processo de divisão do Estado do Mato Grosso, ocorrida no dia 11 de outubro de 1977, em si não alterou a situação das sociedades indígenas das duas novas unidades federativas do Brasil.

Todavia, embora a questão indígena seja institucionalmente tratada na esfera da União, não se pode negar que a correlação de forças políticas nos estados federativos impactou as sociedades indígenas. Nesse aspecto, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul se diferenciaram quanto à intensidade de ações violentas contra os grupos étnicos que lá viviam e ainda sobrevivem.

Segundo o Censo (2010) do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, no Brasil vivem cerca de 900 mil pessoas indígenas, pertencentes a trezentas e cinco etnias, que habitam seiscentas e setenta e duas Terras Indígenas. São duzentas e setenta e quatro línguas faladas, o que torna o Brasil um dos países mais ricos do mundo em diversidade linguística. As diferenças entre MT e MS começam pela distribuição desses índios em seus territórios e pela maneira como os governos estaduais e as populações dos entornos das aldeias os tratam. Mato Grosso do Sul possui sessenta e uma áreas indígenas; nelas habitam sessenta e uma mil, cento e cinquenta e oito pessoas, pertencentes a seis etnias. Naquele Estado há dezesseis mil índios vivendo no contexto urbano. Mato Grosso, por sua vez, tem cerca de vinte e oito mil índios, trinta e oito etnias, sendo que elas vivem em noventa e três áreas tradicionais. No próximo ano será feito um trabalho, organizado por várias entidades e instituições, para precisar o número de índios que moram nas cidades mato-grossenses.

Ao analisar a situação étnica nos dois estados, verifica-se o quanto foi grave a redução das terras indígenas, na década de 1970, em Mato Grosso do Sul. Uma das suas consequências foi a imigração de índios para cidades do próprio Estado, bem como para outros lugares. O caso que ganhou maior projeção nacional ocorreu na década de 1990, quando um grupo de Terenas se transferiu para o Mato Grosso. Depois de uma intensa luta, em 2001, ele foi assentado em uma área do INCRA, na região de Matupá/Peixoto de Azevedo.

Os dados indicam que a violência contra as sociedades indígenas continua ocorrendo nos dois estados, assim como em todo o Brasil. Tais dados se manifestam em duas frentes de combate: uma no campo jurídico e legislativo, onde grandes empresas extrativas e do agronegócio lutam para reduzir as terras indígenas e suprimir os direitos conquistados pelas etnias brasileiras na Constituição de 1988 e a outra nas próprias localidades onde existem terras indígenas. Conforme o “Relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil”, recém-publicado pelo CIMI – Conselho Indigenista Missionário, somente em 2016 foram registrados quarenta e cinco casos de violência contra pessoas indígenas no Mato Grosso do Sul: quinze assassinatos, dezesseis tentativas, quatro homicídios, uma ameaça de morte, quatro lesões corporais dolosas, quatro violências sexuais e um crime de racismo. No Mato Grosso os índices foram menores, mas não menos graves: dos onze casos, três foram homicídios culposos, duas ameaças de morte, um abuso de poder e cinco crimes de racismo e discriminação étnico-cultural. Mato Grosso do Sul continua sendo o campeão brasileiro de suicídios indígenas, tendo registrado trinta mortes no ano passado. Mato Grosso registrou dois casos.

Desde o início da colonização, o maior problema enfrentado pelas sociedades indígenas brasileiras foi, sem dúvida, a invasão de seus territórios físicos (terras) e simbólicos (língua, cultura e religião). Esse problema perdura. Em 2016, conforme o relatório citado, ocorreram cento e treze casos de atentados contra o patrimônio étnico em MS e sessenta e dois ataques em MT. Se, por um lado, persiste a situação humanitária catastrófica das sociedades e pessoas indígenas, por outro, houve avanços significativos nas relações interétnicas. Embora não sejam ideais, as assistências à saúde e educação progrediram, principalmente graças à inclusão de trabalhadores indígenas nessas áreas de trabalho, em suas respectivas comunidades. Este fato favoreceu uma interação comunicativa compreensiva e adequada aos modos de ser de cada etnia, ampliou os universos culturais das pessoas, substituiu antigos interlocutores estrangeiros (funcionários da FUNAI, missionários, funcionários de ONGs – Organizações não Governamentais, antropólogos e políticos locais e regionais) por gente da própria etnia. Os indígenas se tornaram protagonistas de suas demandas, direitos e relações interétnicas.

A História do Brasil registra um processo permanente de cobiça e expropriação de terras e culturas indígenas, gerador de ações discriminatórias e racistas. Neste ano em que comemoramos quatro décadas da divisão dos dois estados em pauta, é interessante fazer algumas considerações sobre o processo de desenvolvimento dessa região, desde a década de 1970.

O Brasil adentrou aquela década sob a égide do propalado “milagre econômico” (1968-1973). Novamente o Estado brasileiro investiu na expansão das fronteiras agrícolas, fato que inseriu o Mato Grosso no Plano de Integração Nacional – um programa geopolítico estratégico de povoamento, produção de produtos primários e via de acesso à região centro-norte do país. O Programa de colonização, denominado PRODOESTE, impactou violentamente o meio ambiente e, consequentemente, as sociedades indígenas.

O “velho” Mato Grosso foi “rasgado” de baixo para cima por duas rodovias federais: as BRs 163 e 364, que tiveram seus trajetos redefinidos. Outras estradas federais e estaduais foram construídas. Novos municípios surgiram, terras devolutas do Estado foram ocupadas, terras indígenas invadidas e as sociedades autóctones contraíram as doenças contagiosas levadas até elas pelos colonizadores. Além disso, aumentou a violência por assassinatos, houve desmatamentos de áreas que serviam de fornecimento de alimentos e ervas medicinais para as comunidades.

Para os colonizadores brasileiros, o PRODOESTE significou “desenvolvimento”, para os silvícolas e posseiros regionais representou expropriação, mortes, doenças, violência sexual e racismo. A derrubada indiscriminada das matas, a degradação dos rios onde se instalaram garimpos e a matança de índios para ocupar suas terras foi de tal ordem que o próprio Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), financiador do Programa, reconheceu os crimes ambientais e humanos ocasionados.

Já na década de 1990, o próprio BIRD desenvolveu outro programa: o PRODEAGRO – Programa de Desenvolvimento Agroambiental de Mato Grosso. Este foi uma continuidade do PRODOESTE (década de 1970) e do Polo Noroeste (1981). Entretanto, ele tinha uma proposta centrada na linha do “desenvolvimento sustentável” e propagou estar disposto a corrigir impactos negativos dos seus antecessores. O então Governo de Mato Grosso procurou se adequar à nova ordem econômica mundial da sustentabilidade, embora, na prática, muitas contradições se verificaram. O Mato Grosso do Sul, por sua vez, não fez a mesma opção de modernização da produção de produtos primários, não expandiu a industrialização para além de dois polos industriais – Campo Grande e Dourados, permaneceu por mais algumas décadas na produção agropecuária e mantém, até hoje, uma estrutura política fundada em antigas oligarquias e sustentada por práticas populistas. Deste modo, as estatísticas sociais demonstram que a pseudo elite sul mato-grossense continua defendendo os seus interesses, entre outras coisas, utilizando-se de práticas expropriatórias contra populações vulneráveis. Não é por acaso que os índices de violência naquele Estado sejam tão terríveis. Em novembro de 2012, o Ministério Público Federal abriu investigação sobre uma possível contaminação criminosa do córrego Ypo´i, que fornece água à comunidade indígena do mesmo nome, em Paranhos, no Mato Grosso do Sul (vide: https://www.terra.com.br › Notícias › Brasil, acesso em 06/10/2017). Os índios mais agredidos continuam sendo os Guarani, Kaiowá e Terena. As mesmas etnias que, na década de 1970, viviam situações de violência extrema, incluindo mortes e redução de suas terras, algumas delas já reservadas desde 1905 pelo Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon.

Finalmente, é importante frisar que o Mato Grosso também é palco de violências contra os índios, conforme mostra o Relatório do CIMI – Conselho Indigenista Missionário, acima mencionado. A discriminação contra os indígenas existe em todos os lugares, mas é no norte e noroeste do Estado onde está aumentando o ódio racista contra as sociedades autóctones e a cobiça desenfreada pelas suas terras e riquezas nelas existentes, especialmente a madeira e minérios. O conflito de interesses dos colonizadores e dos índios tem sido um fator gerador de tensões, cujas consequências são imprevisíveis. No entanto, em que pese os comportamentos belicosos, existe, tanto em Mato Grosso, quanto em Mato Grosso do Sul, uma imensa quantidade de pessoas com espírito humanista, que respeita as diferenças e acredita na convivência pacífica de todos os povos.

 

Paulo Augusto Mário Isaac – Doutor em Ciências Sociais, antropólogo, historiador e professor aposentado da Universidade Federal de Mato Grosso.