Nortão é um dos polos agrícolas mais importantes do mundo. A ocupação demográfica daquela região começou após a divisão territorial há 40 anos. Antes, havia somente um município na área, Porto dos Gaúchos. A melhor rota para o escoamento de suas commodities agrícolas é o Pará, pela BR-163, mas se a Hidrovia Teles Pires-Tapajós fosse operada comercialmente, haveria um sensível ganho em logística. O quê da questão é um cadeado ambiental que dois procuradores botaram nos rios; um deles é Pedro Taques, que trocou o Ministério Público Federal (MPF) pela política e agora é governador de Mato Grosso.
Seguramente a melhor rota para escoamento de commodities do Nortão pelos portos do Arco Norte, a Hidrovia Teles Pires-Tapajós tem um nó judicial que impede estudos e obras em seu leito. Essa proeza foi conseguida em 1997 pelos procuradores da República José Pedro Gonçalves de Taques, de Mato Grosso, e Felício Pontes Júnior, do Pará. A sentença foi proferida pelo juiz Edison Messias de Almeida, da Vara Descentralizada da Justiça Federal em Santarém, e impede ainda a liberação de recursos para tais intervenções.
A decisão saiu com base na ação civil pública impetrada por Taques e Pontes Júnior, que a fundamentaram no Artigo 231 da Constituição Federal. Tal artigo prevê que o aproveitamento dos recursos hídricos em áreas indígenas só pode acontecer após autorização do Congresso Nacional e depois de ouvidas as comunidades afetadas. A hidrovia banha terras pertencentes aos índios mundurukus.
A ação de Taques que feriu interesses do Nortão foi noticiada pelo Jornal Diário de Cuiabá em sua edição de 24 de outubro de 1997, numa reportagem assinada pelo jornalista Anselmo Carvalho Pinto.
O projeto da Teles Pires-Tapajós prevê a ligação de Cachoeira Rasteira, em Mato Grosso, a Santarém, no Pará. Entre as obras previstas estão à dragagem e derrocamento em partes do rio Tapajós no trecho entre Santarém e São Luís do Tapajós (PA) e a construção de uma eclusa. As interferências no trecho têm os custos estimados em aproximadamente US$ 254 milhões.
O projeto da Teles Pires-Tapajós foi elaborado pela Administração das Hidrovias da Amazônia Oriental (AHIMOR) e pela Companhia Docas do Pará. As duas empresas recebiam verba para realização de estudos através de um convênio com o Ministério dos Transportes. A liberação dos recursos foi barrada pela sentença.
Os índios mundurukus habitam as margens do rio Tapajós, nas terras Sai Cinza, Munduruku I, Munduruku II, Praia do Mangue e Praia do Índio, numa área de aproximadamente 950 mil hectares.
A ação civil pública traz anexo um mapa da Fundação Nacional do Índio (Funai) informando que à beira do Tapajós, no município de Itaituba, existem duas terras indígenas, a Praia do Mangue e a Praia do Índio.
Taques trocou o Ministério Público Federal pela política. Em 2010 elegeu-se senador pelo PDT. Quatro anos depois, mantendo sua filiação conquistou o governo e posteriormente se filiou ao PSDB.
NAVEGAÇÃO – A decisão do juiz não inclui o trecho do Baixo Tapajós, com 259 quilômetros ou 140 milhas, entre os portos de Miritituba (em Itaituba) e Santarém, na foz do Tapajós no rio Amazonas.
Itaituba fica a 30 quilômetros à esquerda da BR-163 no sentido Cuiabá-Santarém, e até meados da década de 1970 a ligação entre as duas cidades era feita por aviões e a hidrovia. Por rodovia a distância é de 380 quilômetros, com trechos na Transamazônica (BR-230) e na BR-163 via Rurópolis.
Santarém tem 296.302 habitantes, Itaituba 98.523 e Rurópolis 49.093; essa última cidade nasceu com a abertura da Transamazônica e da BR-163.
Trancamento fere a tradição amazônica
Senhores das grandes navegações, os portugueses descobriram o Brasil e espalharam seus domínios pelos sete mares. Mestres da guerra, os patrícios instalaram fortes nas embocaduras dos rios amazônicos para garantir a posse da terra.
Ao redor das fortificações surgiram núcleos urbanos e a ocupação da Amazônia se deu nas margens dos rios. Em locais bem estudados, Portugal fundou cidades, muitas delas com nomes que ajudavam a matar a saudade da terrinha. Assim nasceram Alenquer, Almeirim, Aveiro, Belém, Bragança, Faro, Santarém e tantas outras, ora; pois, pois!
Santarém, centro regional de prestação de serviços, com seis mil barcos e outras embarcações controladas pela Capitania dos Portos, universidades, terminal hidroviário, amplas avenidas, modernas construções, comércio vibrante e força política, localiza-se na barra onde o azul do Tapajós se encontra com as águas barrentas do Amazonas, e descem curso comum, porém separadas por alguns quilômetros até se juntarem.
Colonizadores do além-mar, escravos africanos e índios pegos no laço. Essa foi a base da formação do povo amazônico ribeirinho, gente que tem no rio sua fonte de alimento e lazer, meio de transporte, inspiração cultural, cenário para expressão da religiosidade e palco para lendas iguais à do boto cor de rosa, que nas noites enluaradas se transforma em charmoso galã que enfeitiça e seduz donzelas.
Na Amazônia o rio é tudo ou quase tudo. Desde a infância se aprende a remar, navegar, a conhecer os segredos e mistérios das águas. Nas vilas e cidades os terminais hidroviários são os locais mais movimentados. É por eles que chegam e saem os moradores e turistas, mercadorias e o atendimento médico em barcos especializados. Habitantes das duas margens do Tapajós ao longo de seus 851 quilômetros de extensão se fundem e se confundem com esse rio.
Caso seja liberada a Hidrovia Teles Pires-Tapajós permitirá a navegação ao longo do rio Tapajós e além dele até Sinop, pelo Teles Pires, independentemente do ciclo das águas. Essa condição seria alcançada com a realização de obras de engenharia nos leitos e com eclusas nas barragens para garantir a passagem contínua de embarcações subindo e descendo.
Atualmente, barcos e lanchas fazem linha regular diária de passageiros entre Itaituba – no Baixo Tapajós – e cidades do percurso a Santarém. Com a hidrovia, o transporte se estenderia até Sinop – seu porto mais ao sul – beneficiando moradores ribeirinhos nos dois estados e abrindo mais um importante leque ao turismo numa região de rara beleza.
Para Mato Grosso o trancamento inviabiliza o aproveitamento dos cursos dos rios Teles Pires e do Tapajós em sua parte alta. Com isso, a movimentação de cargas pela hidrovia ganha contornos de manga curta e o único caminho para se chegar ao porto é a BR-163, enquanto o Brasil sonha com a construção de uma ferrovia ligando Nova Mutum a Santarém.
De Sinop a Santarém, pelos rios
A Hidrovia Teles Pires-Tapajós mudaria a logística de transporte na região central do continente se fosse operada no trecho de Sinop a Santarém: ela iria bem além do chamado eixo de influência, que é a área em seu entorno. Os rios Teles Pires e Tapajós são caminhos naturais entre o Atlântico e o Centro-Oeste, e por eles pode-se estabelecer uma nova rota longitudinal que desafogaria os portos de Santos e Paranaguá, evitando risco de estrangulamento ou apagão na exportação de commodities agrícolas.
O chamado eixo de influência da hidrovia é composto por 48 municípios paraenses e mato-grossenses, com extensão territorial de 550.783 km² – do tamanho da França.
No Pará a hidrovia beneficiaria diretamente uma área de 295.181 km² nos municípios de Santarém, Aveiro, Belterra, Itaituba, Jacareacanga, Juruti, Novo Progresso, Trairão, Rurópolis e parte de Altamira.
Caboclo e vice-versa
RO-RO é a abreviação em inglês de roll on-roll off, que significa o modo como as cargas são embarcadas e desembarcadas, rolando para dentro e fora das embarcações. Na Amazônia, RO-RO Caboclo é o nome que se dá ao transporte de carretas carregadas por balsas de fundo chato, proa lançada e baixo calado.
A maior parte dos produtos industrializados na Zona Franca de Manaus é transportado pelo RO-RO Caboclo, que também responde pela fatia principal do abastecimento da capital amazonense, o que garante intensa movimentação de balsas.
Para Manaus o embarque nas balsas é feito em Belém, depois de uma viagem rodoviária de 2.950 quilômetros de São Paulo até lá. Esse modal se completa com uma viagem de 1.700 quilômetros pelo rio Amazonas. Caso a consolidação da Hidrovia Teles Pires-Tapajós ocorra, Mato Grosso se transformará no grande corredor para essa interligação, com a inclusão do transporte ferroviário num multimodal hidrorodoferroviário, que reduziria a distância rodoviária e o preço do frete.
Caso a navegação comercial entre Sinop e Santarém entre em operação, o RO-RO Caboclo se transferiria para Mato Grosso e com uma vantagem a mais do que o modelo atual que utiliza a rodovia Belém-Brasília para acesso ao porto de Belém: os trilhos da ferrovia da Rumo ALL estão em Rondonópolis. Ou seja, o transporte entre São Paulo e Rondonópolis seria ferroviário; daquela cidade a Sinop, rodoviário; e a partir dali, por embarcações.
No cenário realista, o multimodal por trilhos, rodovias e hidrovia baixaria o trecho rodoviário da rota do RO-RO Caboclo via Mato Grosso para 750 quilômetros, ou seja, 2.200 quilômetros a menos do que o atual, via Belém.
A interligação de Manaus e São Paulo por Mato Grosso e o Oeste paraense criaria oportunidades de emprego e renda no eixo de influência do multimodal e mais acentuadamente nas cidades de transbordo de cargas do trem para o caminhão e nos portos onde aconteceriam as operações do RO-RO Caboclo.
O preço médio mundial do frete fluvial é 60% menor do que o transporte rodoviário. Essa redução de custo teria reflexos positivos em Mato Grosso, que compra industrializados nas duas pontas do RO-RO Caboclo.
Sem comparativo
Menor distância para as commodities chegarem aos principais centros importadores mundiais. Essa é uma das armas de Santarém em relação aos portos de Santos (SP) e Paranaguá (PR), por onde Mato Grosso exporta a maior parte de sua produção agrícola.
De Paranaguá a Roterdã, na Holanda, a distância é de 11.600 quilômetros. De Santos àquela cidade, 11.128. Santarém dista apenas 7.401 daquele porto holandês. E Tóquio, no Japão, fica a 24.600 de Santos, a 24.087 de Paranaguá e a 20.800 de Santarém.
Nordeste pelo modal hidrovia e cabotagem
Cabotagem. Esta palavra típica da linguagem náutica aparentemente não tem nada a ver com Mato Grosso. Mas tem! Com a navegação comercial de Sinop a Santarém, seria possível incrementar o comércio inter-regional com o Nordeste. É nesse contexto que a cabotagem entra.
O Nordeste depende do milho produzido em outras regiões para a ração pecuária e sempre o importa da Argentina, que ocupa aquele nicho de mercado graças ao preço praticado em relação aos concorrentes brasileiros. Ou seja, os hermanos têm competitividade porque pagam frete naval, bem abaixo do praticado pela concorrência sobre rodas.
O Nortão perde em logística para a Argentina quando o assunto é milho para o Nordeste. Sinop, a principal cidade da região, é classificada como sendo de alta continentalidade – índice que mede a distância da lavoura ao porto -, porque sua matriz de transporte é rodoviária. Com a hidrovia, a situação mudaria por completo e o cereal chegaria em balsas ao Baixo Tapajós, onde seria transbordado para navios de cabotagem, que em sentido contrário carregariam industrializados, química fina, sal, insumos, eletrodomésticos e outros produtos.
EDUARDO GOMES/blogdoeduardogomes
Fotos 1 – Lia de Paula
2 e 3 – Geraldo Tavares