Cardápio da reforma agrária

Aos sábados, domingos e feriados nacionais CURTAS será substituída por capítulos do livro  “Dois dedos de prosa em silêncio – pra rir, refletir e arguir“, escrito e publicado em 2015 pelo jornalista Eduardo Gomes de Andrade, sem apoio das leis de incentivos culturais. A obra foi ilustrada por Generino. Capa: Edson Xavier.

Capítulo:

Cardápio da reforma agrária

 

Poxoréu nasceu do garimpo, sempre viveu embalada pelo sonho de bamburrar, de pegar aquela pedra de diamante. Porém, em meados da década de 1990, a atividade garimpeira sofreu um revés, do qual nunca se recuperou. A nova ordem ambiental satanizou o miserável que arrancava no fundo dos rios, nos regos d’água e no desmonte do cascalho o sustento de sua família.

Uma vez garimpeiro, sempre garimpeiro. Não tem nenhuma outra profissão capaz de entusiasmar quem dedicou boa parte da vida à cata do diamante. Mas foi exatamente isso que um grupo político tentou ao canalizar pra Poxoréu dois projetos Casulo do governo federal.

Em 1997 não havia demanda agrária em Poxoréu, embora as ruas estivessem apinhadas de ex-garimpeiros que vagavam sem rumo carregando a silenciosa dor de quem foi escorraçado de seu serviço pela birra de submissos órgãos federais e estaduais aos interesses internacionais.

Assim, surgiu os Casulo. O Jácomo, com 148 hectares, para 48 assentados, e o Santa Maria, com 50 hectares, para 35. Ambos em áreas acidentadas e vizinhas à cidade. A meta era um leque de produção de hortifrúti e pequenos animais. A cultura âncora seria o maracujá, em 87 hectares, que teria destino certo: a fábrica de sucos Maguary, instalada em Araguari (MG) e então de propriedade da British American Tobbaco, que é uma das indústrias fumígenas líderes mundiais no mercado do cigarro.

As forças políticas dominantes em Poxoréu trataram de escolher os parceleiros dos Casulo. O prefeito Lindberg Ribeiro Nunes Rocha (PTB) elaborou uma lista com seus protegidos e o senador Carlos Bezerra (PMDB) também o fez, mas em parceria com Tonho do Menino Velho. Tonho é Antônio Rodrigues, que tem o apelido espichado para Menino Velho, que por sua vez é a alcunha de seu pai- coisa comum em regiões de garimpos povoadas por baianos, como é o caso daquele município. Mais tarde Tonho do Menino Velho seria prefeito em dois mandatos, claro que com os votos de seus cupinchas nos Casulo.

Em Brasília FHC fazia dos Casulo de Poxoréu o piloto para expansão daquele programa pelo Brasil, numa época em que o MST invadia terra até na lua. Delirando acordado e em sonho com a candidatura a vice-presidente em 1998, o governador Dante de Oliveira enterrou R$ 500 mil a fundo perdido para a irrigação dos dois projetos.

A dinheirama que FHC botou nos Casulo evaporou-se. O meio milhão de Dante, também. Parceleiros venderam carros, tubulações, bombas, materiais de construção e tudo mais que se possa imaginar. Além disso, ficaram com uma dolorosa de R$ 497.346 – somente o principal – na agência local do Banco do Brasil. Esse endividamento não foi individualizado, mas tomado coletivamente, numa estranha operação, que ao invés de creditar o empréstimo ao tomador, o lançava nas contas da prefeitura e das duas associações que representavam o Jácomo e o Santa Maria. Ninguém nos Casulo botou a mão num centavo sequer, a Polícia Federal instaurou inquérito para apurar o caso, mas tudo acabou em pizza. Além disso, numa visita que fiz aos Casulo, o parceleiro Lourival Pereira da Costa mostrou-me uma cópia de um mandado de execução forçada, expedido pelo juiz Agamenon Alcântara Moreno Júnior, da 1ª Vara Cível de Poxoréu, a favor do BB, de R$ 43.775,64, proveniente de uma nota de crédito rural emitida em 10 de julho de 98 e vencida em 15 de julho de 99, contraída por 48 assentados do Santa Maria, para custeio de culturas olerícolas. Essa dolorosa também foi jogada sobre os ombros do Abreu.

O à época superintendente do Incra em Mato Grosso, Francisco Nascimento, disse que “o que aconteceu (nos dois projetos) foi má aplicação e desvio de dinheiro público”.
Aquilo não poderia dar certo. Em Poxoréu todos sabiam de sua inviabilidade, mas o barco era tocado, porque o governo liberava Procera e não faltavam outros caraminguás arrancados nos meios políticos.

A duras penas a produção de maracujá deu para carregar um caminhão da Maguary, mas o segundo carregamento não aconteceu. Os ex-garimpeiros começaram a abandonar os Casulo. Lá não se produzia praticamente nada, mas Dante insistia em visitar a cidade de Poxoréu para mostrar ao Brasil uma feirinha com produtos dos dois projetos. Quando isso acontecia, Lindberg e os chefes das duas associações dos parceleiros lotavam uma Kombi com frutas e verduras em Rondonópolis para deixar o governador em transe político com o modelo da reforma agrária de FHC compartilhada por ele.

Numa das visitas, Dante pegou um tomate Santa Rosa, enorme, e o mostrou aos fotógrafos e cinegrafistas. Izael de Deus Dourado, o Nenga, presidente da Associação do Casulo Santa Maria, estava ao lado do governador e atento aos seus movimentos. Antes que o ilustre visitante dissesse alguma coisa, Nenga pulou sobre o fruto e tacou-lhe uma dentada, com direito a caldo escorrendo no canto da boca. A perplexidade tomou conta do ambiente. O líder dos parceleiros engoliu depressa, sorriu e descontraiu o ambiente: “O nosso tomate já é bom e fica melhor ainda quando passa pela mão do nosso chefe”. O riso foi geral.

Dante embarcou para Cuiabá. No aeroporto Lindberg pergunta a Nenga por que fez aquilo: “É que o senhor não viu, mas aquele tomate tinha uma etiqueta do Supermercado Sol, de Rondonópolis, onde nós o compramos”. Em síntese: reforma agrária em Mato Grosso cada um engole a seu modo.