Especial UFR – Terra de calor humano

1998 – Ninomiya e um grupo de alunos

Pra quem a conhece somente pelos números, superlativo seria o melhor título para Rondonópolis. Porém, os que a vivem no dia a dia sabem que esse rótulo não pode ofuscar na frieza estatística o calor humano diferenciado da cidade que nasceu no solo vermelho à margem do rio Poguba, no ponto onde o Alto Pantanal se funde com o cerrado, sob o olhar distante da Serra da Petrovina e que chegou aos 64 anos, envolvente, sedutora, irresistível e de braços sempre abertos.

O município tem definição geográfica, mas seu polo se integra de tal modo, que numa visão ampliada as cidades se completam em todos os sentidos. Com a população regional com 465.242 indivíduos o espírito é o mesmo, de união. Desde os primórdios da colonização e até agora, pelas ruas e nos campos, todos se entendem e cada um a seu modo contribui para o desenvolvimento coletivo. Lá, todos, independentemente de onde tenham nascido, são rondonopolitanos com os mesmos direitos e deveres daqueles que desde o primeiro suspiro respiram o ar purificado pela mata da reserva Tadarimana, dos bororos, entre os rios Poguba (Vermelho, pra nós), Tadarimana e Jurigue, bem ao lado da cidade caracterizada pelo calor humano de seu povo. 

Curumins de Tadarimana

As mais diversas culturas regionais levadas pelos migrantes para o polo de Rondonópolis formam um interessante caldo cultural. Entre o xaxado e o forró pé de serra dos Centros de Tradições Nordestinas e o vanerão dos Centros de Tradições Gaúchas – ritmos à parte – há muito em comum.

A colônia japonesa teve destacado papel na construção da cidadania no polo de Rondonópolis. Em 1956 Noda Guenko fundou uma vila que mais tarde seria a cidade de Pedra Preta. Quem cuidou do empreendimento imobiliário de Guenko foi o casal Tokiko e Jinya Konno.

No final dos anos 1960 e começo da década de 1970 a colônia japonesa reunia centenas de curiosos no entorno de uma quadra improvisada em campo de basebol no Jardim Guanabara. A sabedoria popular apelidou o lugar de “Campo do Japonês“. A atividade esportiva continuou até que a área foi ocupada por prédios.

Desde 1972 Rondonópolis tem um tatame que formou gerações de judocas. Trata-se da Associação de Judô e Cultura Física de Rondonópolis criada pelo sensei Manao Ninomiya. Um dos alunos de Ninomiya que mais se destacaram foi Robério Libânio, que se tornou sensei e um dos mais destacados praticantes dessa luta em Mato Grosso. Ninomiya é figura respeitada pela população rondonopolitana.

O libanês José Salmen Hanze, o Zé Turquinho, fundou a cidade de São José do Povo. Vendedor habilidoso, quando alguém interessado em comprar terreno no lugar lhe perguntava como a vila se chamaria, Zé Turquinho respondia que era “São José do ‘Bovo‘” – São José não era mera coincidência quanto ao seu nome; “Bovo” era como seu sotaque permitia que se pronunciasse Povo. Zé Turquinho certa feita candidatou-se a vereador pelo PTB rondonopolitano. Em campanha prometia “veneno pro bovo”, o que assustou o eleitorado e jogou por terra seu projeto de chegar à Câmara. Vale observar que o veneno a que ele se referia era produto químico que pretendia doar aos cotonicultores que cultivavam lavouras de toco na época em que Rondonópolis era chamada de Rainha do Algodão.

Zé Turquinho teve destacado papel no polo de Rondonópolis. O terreno para a construção da Santa Casa de Misericórdia de Rondonópolis e parte dos tijolos utilizados em sua edificação foram doados por ele, que também doou a área onde a Polícia Militar construiu seu batalhão no município.

Os povos que chegaram à região se juntam aos seus primitivos moradores: povos indígenas. Várias etnias vivem nas reservas em Rondonópolis, Poxoréu, Primavera do Leste, Paranatinga, Gaúcha do Norte e Santo Antônio do Leste. O Parque Indígena do Xingu, com área igual a de Sergipe, se estende por Paranatinga e Gaúcha do Norte, e outros municípios fora daquele polo.

Quem se mudava para o polo de Rondonópolis logo assumia sua nova cidadania, mas nunca sem se esquecer de seus lugares de origem. Antigos moradores daquela cidade contam que as cores predominantes da bandeira do município: branco, azul e vermelho foram escolhidas pelo primeiro prefeito, Rosalvo Farias, para homenagear o pavilhão estadual de sua Boa Terra baiana.

Calor Humano e ousadia são marcas regionais. Em 1949, usurpando o papel do governo no melhor sentido da palavra, o garimpeiro mineiro Jacinto Silva residente em Poxoréu  rasgou a machado a rodovia Deputado Osvaldo Cândido Pereira (MT-130). Nos anos 1980 ela foi pavimentada pelo governador Júlio Campos.  A 130 ganhou intensa movimentação com o transporte de commodities agrícolas para o terminal da ferrovia da Rumo ALL em Rondonópolis.

No começo dos anos 1970, antes da profissionalização do futebol rondonopolitano, a cidade montava seleção para enfrentar os principais times de Cuiabá.  Árbitro amador local, João Leandro, o Roleta, invariavelmente apitava as partidas. Antes do primeiro apito Roleta costumava desafiar cartolas cuiabanos: “sou nós e dou dois de lambuja; quer apostar?”.

São muitas e belas as histórias da ocupação do polo de Rondonópolis. Ancestrais de famílias agora tradicionais na região ali chegaram após dolorosas caminhadas a pé desde a Bahia, de onde procedeu boa parte dos primeiros garimpeiros de Poxoréu e do Vale do Garças, e os pioneiros da agropecuária. Uma das páginas da construção da população  daquela região começou com uma longa viagem num pau de arara:

 

Da Boa Terra pra Jarudore

 

Otávio, oxente

Seca que parecia não ter fim. A terra esturricada pela inclemência do Sol não produzia e o garoto Otávio cortava palma de gado – cacto sertanejo – para manter em pé as vaquinhas curraleiras no sítio de sua família em São Desidério, no oeste baiano.

A labuta era pesada e incessante. A família de Otávio se juntou a outras da vizinhança fretando um pau de arara para tirá-los da aridez e levá-las a um canto de Mato Grosso que sequer aparecia nos mapas: Poxoréu.
Assim, aos 11 anos o pequeno Otávio virou retirante da seca nordestina. Sessenta e oito baianos de todas as idades – 14 crianças – e de vários sobrenomes pegaram a estrada empoeirada e que parecia sem fim.

Sem um palmo de asfalto o caminhão Ford Big Job cruzou a Bahia, atravessou o Norte de Minas e Goiás, entrou em Mato Grosso e a aventura que se estendeu por um mês chegou ao fim, em Poxoréu, numa tarde de setembro, há 60 anos. O possante freou pela última vez na longa jornada pelo interior do Brasil. De sua carroceria desceram primeiro os homens. Uma escada na parte traseira facilitou o desembarque das mulheres e crianças. Os paus de arara olhavam curiosos e ressabiados o vaivém da cidade que fervilhava com o garimpo da pedra mais cobiçada do mundo.

O menino Otávio viu alguns guris com varas de pescaria passando perto do caminhão estacionado. Achou aquilo diferente. Curioso, saiu de mansinho do grupo de baianos. Observou a criançada pescar nas águas barrentas do rio que empresta o nome à cidade. “Peixe; vige, isso é peixe, ôxente!”, gritou quase inconscientemente o baianinho pouco acostumado com água corrente. Os pequenos pescadores não gostaram da reação do estranho. Caras feias o fizeram voltar depressa ao seu grupo.

Morro do Coelho – Jarudore

Escureceu e os paus de arara procuraram suas redes para a última noite no caminhão. Ao invés do movimento diminuir com a escuridão das ruas mal iluminadas, o vaivém aumentou, mas com um detalhe: não se via mulheres; apenas os homens caminhavam e a maioria tinha destino comum: a zona boêmia mais famosa de Mato Grosso à época, a Rua da Bahia, repleta de cabarés com mulherio de cair o queixo e onde os garimpeiros que bamburravam lavavam o chão com cerveja Brahma de casco escuro.

O calmo oeste baiano cedeu lugar ao burburinho de Poxoréu. Do caminhão se ouvia o som das eletrolas dos cabarés, que inundavam a noite alternando o bolerão “Bésame Mucho”, da mexicana Consuelo Velázquez, com o modão “Cabocla Tereza”, da dupla João Pacífico & Raul Torres. A barulheira não tirou o sono do pequeno Otávio, que acomodado numa rede armada ao lado de outras na carroceria se deixou vencer pelo cansaço da longa viagem, pela emoção da descoberta da pesca e pelo fascínio com a terra mato-grossense.

Amanhece em Poxoréu e Otávio se encanta com o azul do céu, o barulho das águas do rio a revoada das araras e outros pássaros. O grupo baiano é disperso. Parte vai para fazendas na vila de Paraíso do Leste. Os solteiros pegam o rumo dos garimpos de diamante em Alto Coité, Raizinha e sabe-se lá Deus mais onde. Algumas famílias esperam a vez de embarcar numa picape Willys para Jarudore.

Com o topete arrepiado pelo vento, Otávio desembarcou da carroceria da picape na vila de Jarudore, município de Poxoréu, de onde nunca mais saiu. No dia seguinte, sua mãe o matriculou na Escola Estadual Franklin Cassiano da Silva, para concluir o aprendizado do abecedário e aprender a fazer as quatro operações.

– Como é seu nome guri? – pergunta a professora.

– Otávio – responde.

– Tem batistério ou certidão de nascimento?

– ‘Tá’ aqui – colabora a mãe, com a papelada nas mãos.

– Seu nome não é Otávio!

– Não, senhora! É Otaviano Francisco Vieira. Otávio é apelido – explica tímido olhando para o piso de chão batido da escola.

O baianinho Otávio cresceu, virou agricultor. Ajudou a ocupar o vazio demográfico mato-grossense no agora importante polo de Rondonópolis.

 

Eduardo Gomes/blogdoeduardogomes

FOTOS:

1 – Eduardo Gomes

2 – Matusalém Teixeira

3 – Evilázio Alves

4 – Marcos Negrini