BR-163 – Gaúcho funda vila na Serra do Cachimbo

Em meados dos anos 1970 o Rio Grande do Sul se dividiu entre os que o deixaram por Mato Grosso e os que ficaram. No município de Lagoa Vermelha, Henrique Lopes de Lima resistiu até não poder mais para ficar junto ao segundo grupo, mas foi vencido, tchê! Apertado e em busca de espaço para criar a família com dignidade, pegou a estrada e veio para ‘o’ Mato Grosso.

Com a mulher e oito filhos pequenos para criar Henrique apeou à margem da BR-163 na Serra do Cachimbo, depois de penosa viagem num surrado Fusca que ele gauchescamente chama de Fuca. O sol ainda ardia apesar do adiantado da hora a um passo da boca da noite quando seus pés tocaram o chão encharcado pela chuvarada. A paisagem que se via era mata de um lado e outro com um corredor de barro que era a BR-163, recém-inaugurada. O calendário marcava: Domingo, 14 de novembro de 1976. Naquele dia nasceu a vila Gaúcho, o último núcleo urbano mato-grossense antes do Pará.

Um improvisado rancho abrigou a família Lima. A estrada era quase deserta, mas nas primeiras horas após o desembarque alguns aventureiros a cruzaram nos dois sentidos. Henrique mal desembarcou providenciou uma mesa rústica sobre a qual botou suas ferramentas de trabalho: garrafas de cachaça, gengibre, Conhaque Presidente, vinho do Vale dos Sinos, salame de combate, biscoitos e algumas carteiras de cigarro Hollywood e Minister que cruzaram o Brasil até aquele local. No buraco que dava acesso ao interior do barraco uma placa escrita com letras tortas numa tábua não deixava dúvida que aquele era um Bar e Restaurante.

Pouco tempo após escurecer o Bar e Restaurante sem nome saiu da opaca luz de lamparina para um clarão bonito: eram os faróis de uma Kombi, que barulhenta pela falta do escapamento perdido na buraqueira parou bem em sua única porta – se é que aquilo podia ser chamado de porta.

– Ó vivente! – gritou o motorista, já com os pés no barro.

– Entre que a casa é tua, tchê! – Respondeu o dono do estabelecimento saindo ao seu encontro.

– Tu és novato por aqui! Qual é o teu nome e de onde vens? – cutucou o motorista.

– Sou Henrique Lopes de Lima, venho do Rio Grande e tenho um primo que é cabo do 9º BEC.

– Aqui tu não és Henrique coisa nenhuma. Tu és o Gaúcho, índio velho e seja bem-vindo ao fim do mundo – corrigiu.

– E qual a tua graça, gaudério? – quis saber o comerciante.

– Sou o Gaúcho da Kombi!

– A casa é tua, xará…

Enquanto os dois travavam diálogo, os demais ocupantes da Kombi desembarcaram e foram os primeiros fregueses do bar e restaurante no fim do mundo. O motorista explicou que levava um grupo de peões que prestava serviço ao 9º BEC, para votar em Sinop. “É que amanhã é dia de eleição para prefeito e essa gente (apontou para os oito passageiros) vota em Sinop aquela vila que está se formando lá pra baixo (no município de Chapada dos Guimarães)”.

Os primeiros fregueses se foram, deixando para trás o apelido que apagaria o nome Henrique. A vila por ele fundada virou sua xará.

Quando alguém se referia àquela região dizia: “Lá no Gaúcho”. Tão logo saíram, a placa de identificação do estabelecimento foi alterada para “Bar e Restaurante do Gaúcho”.

O tempo passou. Gaúcho aos poucos ampliou o negócio e o diversificou também para hotelaria. Daí a conseguir um naco de terra não foi difícil e gradualmente surgiram as primeiras cabeças de seu rebanho bovino que garantia o leite para as crianças da região e a carne no prato dos moradores e aventureiros que cruzavam a BR-163.

A sorte nos negócios também se repetia – graças a Deus, diz Gaúcho – na família. Tanto assim, que a filharada aumentou com o nascimento da caçula e mato-grossense Ângela.

Habilidoso, bom de prosa e mestre na arte de vender, Gaúcho caiu no agrado dos militares do vizinho Campo de Provas Brigadeiro Velloso, que todos na região, indistintamente, chamam de Base Aérea do Cachimbo. Em 1984 a cantina do pessoal da FAB precisava de carne bovina e um oficial procurou o único homem que num raio de 200 quilômetros poderia fornecê-la. Porém, fez uma exigência: precisava de nota fiscal para efetuar os pagamentos.

Com a proposta da FAB, Gaúcho pegou um ônibus do Expresso Maringá e se mandou para Colíder onde abriu inscrição estadual. Com alguns blocos de nota fiscal debaixo do braço fez o caminho inverso.

Caminhoneiros que passavam pelo Bar, Restaurante e – também – Hotel Gaúcho exigiam comprovação do pagamento e o comerciante emitia NF que identificava seu estabelecimento enquanto empresa instalada na Vila Gaúcho, à margem da BR-163, no município de Colíder, Estado de Mato Grosso, perto do córrego do XV.

A fiscalização fazendária paraense torceu o bigode com Gaúcho, porque julgava que a área onde seu estabelecimento funcionava pertencia ao Pará. Tanto assim, que um quilômetro após seu bar, restaurante e hotel, rumo a Cuiabá, havia um posto fiscal instalado por Belém num barraco de madeira em palafitas apesar de localizado em plena Serra do Cachimbo, que pertence a Mato Grosso.

Gaúcho sofria pressão dos paraenses, mas nunca se indispôs com a fiscalização. Mesmo assim, certo dia, o cerco se apertou contra ele porque emitia NF para caminhoneiros. Por coincidência quando a situação se azedava uma viatura da FAB estacionou em sua porta. “Vou emitir a NF do mês para a Base; se vocês têm alguma coisa contrária reclamem com eles”, desafiou. Não se ouviu nenhum pio. O único barulho ficou por conta da camionete do governo do Pará se arrancando.

A inscrição do estabelecimento do Gaúcho nunca foi utilizada por Mato Grosso enquanto reforço de prova documental na ação que move contra o Pará no Supremo Tribunal Federal com o objetivo de reaver uma área triangular de 22 mil quilômetros quadrados que o vizinho ocupa indevidamente na faixa de divisa seca que se estende do ponto mais ao norte da Ilha do Bananal, no rio Araguaia, no Estado de Tocantins, diante de Santa Terezinha, até o Salto das Sete Quedas, no rio Teles Pires, município de Apiacás, mas que por erro de interpretação ou má-fé Belém a mantém sob sua tutela.

Não se sabe por que razão o governo de Mato Grosso nunca fundamentou em sua defesa que a região da vila Gaúcho é habitada por gente que se identifica e se sente mato-grossense.

Também não se sabe por que o mesmo governo nunca argumentou que muitos posseiros daquela região receberam cartas de anuência do Incra que os reconhece enquanto produtores mato-grossenses.

Independentemente do que querem Mato Grosso e Pará. Independentemente da sentença que mais dia menos dia o Supremo Tribunal Federal proferirá sobre o litígio, o que conta para o povo da Serra do Cachimbo é que naquele lugar existe uma vila fundada em 14 de novembro de 1976 por um homem que trocou seu nome pelo apelido Gaúcho, o mesmo daquele lugar que ao invés de fim do mundo é importante marco da colonização de uma das áreas mais promissores da Amazônia.

 

SERVIÇO – Gaúcho é uma vila com bares, restaurantes, hotelaria, posto de combustível, borracharias, mecânico quebra-galho, bolicho, sinuquinha para matar o tempo e casas onde famílias vivem em paz. Em seu entorno há duas escolas mantidas pela prefeitura de Guarantã do Norte e um posto fiscal da Secretaria de Fazenda de Mato Grosso. A energia é distribuída pela Energisa, de Cuiabá.

A vila dista 54 quilômetros ao norte de Guarantã, município ao qual pertence. A rodovia BR-163 a divide ao meio. Distante 11 quilômetros rumo norte o Pará construiu um posto fiscal na área em litígio.

Eduardo Gomes – blogdoeduardogomes – também foto

 

PS – Trecho transcrito do “LIVRO 44” publicado em Cuiabá, no ano de 2014, pelo jornalista Eduardo Gomes de Andrade, sem apoio das leis de incentivos culturais

 

Redação blogdoeduardogomes

FOTO: blogdoeduardogomes

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