Nhonhô Tamarineiro e o fim da era dos coronéis

Maior coronel político mato-grossense no século passado, Nhonhô Tamarineiro virou lenda. Conhecer parte de sua vida deveria ser obrigatório para a classe política.

blogdoeduardogomes mostra quem foi Nhonhô Tamarineiro, a figura política da pequena Nossa Senhora do Livramento que dava ordens no governo e liderava a população de seu município ao estilo da época.

Três capítulos sequenciais do livro Dois dedos de prosa em silêncio – pra rir, refletir e arguir, publicado em Cuiabá no ano de 2015, pelo jornalista Eduardo Gomes de Andrade, com ilustração de Generino, capa de Édson Xavier e sem apoio das leis de incentivos culturais estampam Nhonhô Tamarineiro pelo verso e o reverso.

Boa leitura.

Eis os capítulos: 

 

 

Filinto tentou e não conseguiu

 

Para quem não conhecia o curral eleitoral mais famoso do Alto Pantanal, aquele resultado ia além de um atestado de liderança de Nhonhô Tamarineiro. Mas ele não entendia assim. Tanto não que mandou apurar quais os dois atrevidos que não votaram em Fernando Corrêa da Costa para governador, em 1960. Enquanto aguardava pela descoberta dos traidores, não ficou em paz. Afinal, aquilo era uma desfeita, pois Fernando teve somente 501 dos 503 votos da urna mais favas contadas de Nossa Senhora do Livramento.

Transcorridos 51 anos da desfeita pelos dois votos, entrevistei o pecuarista Osvaldo Botelho de Campos, 81, que nem de longe lembrava Nhonhô Tamarineiro – nome que o consagrou na esfera política no Mato Grosso dos currais eleitorais onde UDN, PSD e PTB travavam verdadeiras batalhas, algumas na acepção da palavra, pelo poder.

Na entrevista Nhonhô Tamarineiro contou muito de seu passado, mas ainda assim continuou guardando segredos dos bons tempos em que mandava e desmandava.

Postura ereta, camisa de linho branco impecável, voz pausada e com frases bem articuladas, mas sem precisão de datas, Nhonhô Tamarineiro conta causos de seus tempos de político, homem rico e poderoso, que não disputava mandato, mas era citado nas rodas políticas como eterno sócio do poder independentemente do partido ao qual pertencesse o governador.

O nome Nhonhô Tamarineiro era senha para abrir todas as portas em Cuiabá. Bastava um bilhete manuscrito em papel de embrulho ou um olhar de aprovação ou desagrado de Nhonhô Tamarineiro, para o governador prontamente atendê-lo.

Foi com essa senha que um dia ele botou espremido nos cinco assentos de passageiros da Rural Willys oito companheiros de UDN e se mandou da fazenda Tamarineiro – onde tinha um bolichão varejista e atacadista – em Livramento, rumo a Cuiabá. A viagem foi rápida pela estrada de chão. Ele tinha pressa para atender os correligionários e já estava de saco cheio de seus pedidos, que se arrastavam por quase uma semana. Depois de muitos solavancos, estacionou na garagem privativa do governador Pedro Pedrossian (PSD), bem ao lado do carro oficial do palácio.

Seguido por oito semblantes amarelos de ansiedade, mandou – coronel político não pedia, mandava – anunciar a Pedrossian que queria uma audiência. Foi atendido de pronto e ninguém menos que o governador o recebeu na porta do gabinete. A conversa foi tiro e queda entre os dois adversários.

Minutos depois de desaparecer gabinete adentro, Nhonhô Tamarineiro saiu de lá rodeado por oito fiscais da Secretaria de Fazenda que não conseguiam conter sorrisos de alegria. Antes de acionar a partida da Rural, abriu a boca para os caronas pela primeira vez desde que saíra do Tamarineiro. Foi curto e grosso: “A canetada da nomeação foi do PSD, mas quem mandou nomear foi a UDN”. Um silêncio respeitoso deixou claro que o grupo entendeu.

Mandato eletivo Nhonhô Tamarineiro nunca disputou. Chegou inclusive a dispensar um convite de Filinto Müller (arte), em 1970, para compor sua chapa de candidato ao Senado, como suplente. Filinto insistiu, mas ele bateu o pé alegando que era praticamente analfabeto e tinha negócios para cuidar no Tamarineiro: “Se eu morrer, você toca o resto do mandato, os assessores do Senado explicam todas as dúvidas que surgirem e o salário não é lá de se jogar fora. Além do mais, agora somos todos da Arena, pois o tempo da UDN e do PSD já passou”, reiterou Filinto. O coronel mantém-se irredutível. Explica seu posicionamento numa linguagem simples: “No Tamarineiro ninguém levanta a voz contra mim. Em Brasília qualquer um poderá me aporrinhar”.

Se tivesse aceitado o convite, Nhonhô Tamarineiro entraria para a história enquanto senador, mas quem conseguiu essa proeza foi Italívio Coelho, de Campo Grande, que era suplente de Filinto e assumiu o cargo com sua morte.

Filinto presidia o Senado e morreu em 11 de julho de 1973 – data em que comemorava 73 anos – na queda de um Boeing da Varig numa plantação de cebolas no povoado de Saulx-les-Chartreaux, imediações do aeroporto de Orly, França.

 

Livramento, seu novo endereço

 

Nas veias de Nhonhô Tamarineiro corria uma mistura de sangue que não poderia mesmo resultar em alguém que não fosse bom comerciante e político habilidoso. Afinal, ele é filho de sírio com uma Campos, de Várzea Grande.

Do pai, Salim Homs, herdou a arte da venda. Salim trocou o deserto da cidade de Homs pelo centro da América do Sul. Desembarcou de um vapor em Cuiabá para trabalhar de caixeiro-viajante e morreu jovem quando o filho Osvaldo ainda era bebê.

Se Nhonhô Tamarinheiro não enveredasse pelas sendas que escolheu estaria negando o melhor do inventário dos Campos, de Várzea Grande: a política. Daí que herdou da mãe, Aurélia, o gosto pela coisa. Gosto, não, cachaça mesmo.

A vida do menino Osvaldo, o Nhonhô, não foi moleza e ele deu murros em ponta de faca. Adolescente, comprou uma carroça e ganhava o pão de cada dia fazendo fretes em Várzea Grande. Aos 19 anos vendeu a carroça e investiu um conto de réis num bolicho do cunhado Sebastião Ramos de Almeida, naquela cidade. Tornou-se sócio minoritário no negócio. O salto para a fortuna não foi acidental: o tio e padrinho Miguel Gatass, homem rico e dono de vapores que faziam linha de Cuiabá a Corumbá, decidiu ajudá-lo.

Gatass investiu em nome de Nhonhô no capital do bolicho, mas o olho gordo de Sebastião botou o cunhado para escanteio.

Em 1943, escorraçado pelo cunhado, Nhonhô saiu da sociedade e novamente comprou uma carroça. O tio não o queria carroceiro e mandou que ele montasse um comércio onde julgasse ideal. Ainda naquele ano, abriu as portas no município de Nossa Senhora do Livramento, mas o negócio não prosperou.

Nhonhô não deixou Livramento e naquele ano achou um canto bonito, ideal para o estabelecimento comercial. Ali, ocupou a área devoluta da fazenda Tamarineiro, perto do córrego Espinheiro e o nome dessa propriedade incorporou-se ao dele transformando-o para sempre em Nhonhô Tamarineiro. Comprou terras dos vizinhos e formou uma gleba de 11.800 hectares. Assim surgia a figura lendária de Nhonhô Tamarineiro.

Ninguém tinha topete para enfrentar Nhonhô Tamarineiro no voto. Mas um sitiante vizinho abriu um bolicho e declarou guerra verbal contra o dono do Tamarineiro. “Dizem que ele era criminoso e valentão”, revelou-me numa entrevista o coronel, já aposentado.

Escuta uma coisa dali, outra daqui, Nhonhô Tamarineiro pensou com os botões: “Vou mandar essa sujeito ‘viajar’ pra sempre”. Antes de tocar adiante o pensamento, o coronel recuou por entender que o atrevido não passava de um borra-botas.

Sorte teve o sitiante. Nhonhô Tamarineiro comprou o sítio, ele viajou com as próprias pernas e nunca mais apareceu por lá.

Missa na Fazenda Tamarineiro era motivo de festa. O padre celebrava uma a cada ano. Aproveitando a presença do sacerdote, as famílias batizavam a filharada. Nhonhô Tamarineiro e a eterna namorada, dona Elina, foram padrinhos de “uns 500”.

Tantos batizados assim só reforçam a tese da fertilidade que paira no ar na região do Tamarineiro. Nhonhô Tamarineiro e dona Elina não ficaram para trás e deram exemplo aos vizinhos que família tem que ser numerosa.

O casal Elina e Nhonhô Tamarineiro gerou 11 filhos no Tamarineiro: Venceslau (o primogênito), Nereu, Salim, Hermes, Pedro Paulo, Mariana, Elizete, Eleninha, Ivete, Maria Auxiliadora e Elina que herdou o nome da mãe.

Cargo eletivo ele nunca disputou, mas uma vez caiu em tentação e aceitou que o governador Fernando Corrêa da Costa o nomeasse subdelegado de Polícia em Livramento. Não gostou da atividade e indicou outro para substituí-lo.

Em 1945 foi um dos fundadores da União Democrática Nacional (UDN) em Mato Grosso juntamente com Joaquim Nunes Rocha (Rochinha), Garcia Neto, Fernando Corrêa da Costa e outros nomes de destaque na política regional. Ao longo da militância política que se estendeu à Arena, esteve com os presidentes Getúlio Vargas, Eurico Gaspar Dutra, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, Jango Goulart, Castelo Branco, Costa e Silva, Emílio Médici e Ernesto Geisel.

 

 

Sem Nhonhô, o fim de uma era

 

Nhonhô Tamarineiro decidiu plantar café. Seu tio Luís Coelho de Campos, o Coronel Luisinho, cacique político em Poxoréu, arranjou para ele um grupo de 20 paulistas doutores na lavoura cafeeira.

Os paulistas chegaram ao Tamarineiro, exigiram um caminhão para a lavoura, foram atendidos por Nhonhô Tamarineiro e botaram a mão na massa.

De café os paulistas sabiam tudo, o problema é que eles também manjavam de democracia e resolveram fazer oposição ao dono do lugar, tentando acender o pavio da oposição pras bandas do Tamarineiro, onde havia quem ditava as regras de comportamento e não aceitava questionamento fosse de quem fosse.

Os paulistas encheram o saco de Nhonhô Tamarineiro. Na véspera da eleição o caldo entornou sem que ninguém no Tamarineiro ficasse sabendo, a não ser, é claro, os homens que cumpriram a ordem do coronel e, naturalmente, os cafeicultores oposicionistas.

Na madrugada de 2 de outubro – véspera da eleição -, os homens de Nhonhô Tamarineiro chegaram ao barracão dos paulistas. De lá saíram com todos eles e os enfiaram num casarão abandonado. Dois dias depois, com os peitos cheios de ardor democrático e os 20 títulos eleitorais sem a rubrica do mesário, foram devolvidos ao Coronel Luisinho. “Xia; dgente, assim não presta”.

Negar ele não negava, mas em compensação também não confirmava. Apenas sorria. Mas contam que Nhonhô Tamarineiro tinha duas máquinas fotográficas Kodak do modelo “tijolo”, uma ponto Vermelho, outra, Branco. Com a primeira eram fotografados aqueles cujos votos eram certeiros. A outra clicava os suspeitos. O detalhe é que a segunda não tinha filme.

Quem operava essas preciosidades era o bambambã e precursor da fotografia política em Cuiabá, Lázaro Papazian, o “Cháu”.

Quando o preparador eleitoral ia ao Tamarineiro para acatar requerimentos de títulos, os moradores da região se reuniam na sede da fazenda de Nhonhô Tamarineiro. Ali, recebiam as fotos para o documento. O dono da casa chamava um por um, pelo nome: “Gonçalo Tenuta, toma sua foto”.

Quando a entrega terminava, os suspeitos ficavam de cabelo em pé. “Cadê, cadê?”, queriam saber onde estavam as fotos. Nhonhô Tamarineiro jogava a culpa em Cháu. Tchau, perigo de votos contra.

Nhonhô Tamarineiro escreveu com as letras da época uma das mais ricas páginas da política mato-grossense. Elegeu os filhos Nereu deputado estadual e prefeito de Livramento e Várzea Grande; e Venceslau, prefeito de Santo Afonso. Seu irmão Gonçalo Botelho de Campos foi prefeito de Várzea Grande e deputado estadual. Seu sobrinho Nelson Ramos exerceu mandatos de deputado estadual ao longo de quatro legislaturas, entre 1963 e 1978. Além disso, costurou vitórias eleitorais para amigos. Ele sempre irrigou amizades com votos, muitos votos. Foi mestre na arte de liderar.

Da pequena Livramento dava as cartas na política mato-grossense. Nunca teve adversário à altura, para desbancá-lo, a não ser a idade, que se adquire a cada arfada, a cada passo, a cada entardecer e amanhecer, a cada voto, a cada eleição, a cada articulação política que Nhonhô Tamarineiro tão bem sabia fazer.

Aos 89 anos, a um passo dos 90, em Cuiabá, para onde se mudou, Nhonhô Tamarineiro fechou os olhos para sempre, na segunda-feira, 25 de janeiro de 2010. Seu adeus reuniu figuras importantes dos meios políticos.

O sepultamento do corpo de Nhonhô Tamarineiro em Cuiabá reuniu Carlos Bezerra, Thelma de Oliveira, Jayme Campos, Júlio Campos, Chico Monteiro, Osvaldo Sobrinho e muitos outros vultos políticos.

Seu adeus marcou o fim de uma era: a era dos coronéis, dos quais foi o mais astuto, o mais humano, o mais amigo, o mais leal, sem abrir mão das prerrogativas de coronel chefe político. O fechamento de seu caixão também fechou o ciclo de um modelo político que deixou a realidade para entrar no folclore.

 

 

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