Seca que parecia não ter fim. A terra esturricada pela inclemência do Sol não produzia e o garoto Otávio cortava palma de gado – cacto sertanejo – para manter em pé as vaquinhas curraleiras no sítio de sua família em São Desidério, no Oeste baiano.
A labuta era pesada e incessante. A família de Otávio juntou-se a outras da vizinhança fretando um pau-de-arara para tirá-los da aridez e levá-las a um canto de Mato Grosso que sequer aparecia nos mapas: Poxoréu.
Assim, aos 11 anos o pequeno Otávio virou retirante da seca nordestina. Sessenta e oito baianos de todas as idades – 14 crianças – e de vários sobrenomes pegaram a estrada empoeirada e que parecia sem fim.
Sem um palmo de asfalto o caminhão Ford F-8 Big Job cruzou a Bahia, atravessou o Norte de Minas e Goiás, entrou em Mato Grosso e a aventura que se estendeu por um mês chegou ao fim, em Poxoréu, numa tarde de setembro, há 66 anos.
O possante freou pela última vez na longa jornada pelo interior do Brasil. De sua carroceria desceram primeiro os homens. Uma escada na parte traseira facilitou o desembarque das mulheres e crianças. Os paus de arara olhavam curiosos e ressabiados o vaivém da cidade que fervilhava com o garimpo da pedra mais cobiçada do mundo.
O menino Otávio viu alguns guris com varas de pescaria passando perto do caminhão estacionado. Achou aquilo diferente. Curioso, saiu de mansinho do grupo de baianos. Observou a criançada pescar nas águas barrentas do rio que empresta o nome à cidade. “Peixe; vige, isso é peixe, ôxente!”, gritou quase inconscientemente o baianinho pouco acostumado com água corrente. Os pequenos pescadores não gostaram da reação do estranho. Caras feias o fizeram voltar depressa ao seu grupo.
Escureceu e os paus-de-arara procuraram suas redes para a última noite no caminhão. Ao invés do movimento diminuir com a escuridão das ruas mal iluminadas, o vaivém aumentou, mas com um detalhe: não se via mulheres; apenas os homens caminhavam e a maioria tinha destino comum: a zona boêmia mais famosa de Mato Grosso à época, a Rua Bahia, repleta de cabarés com mulherio de cair o queixo e onde os garimpeiros que bamburravam lavavam o chão com cerveja Brahma de casco escuro.
O calmo Oeste baiano cedeu lugar ao burburinho de Poxoréu. Do caminhão se ouvia o som das eletrolas dos cabarés, que inundavam a noite alternando o bolerão Bésame Mucho, da mexicana Consuelo Velázquez, com o modão Mula Preta, de Raul Torres. A barulheira não tirou o sono do pequeno Otávio, que acomodado numa rede armada ao lado de outras na carroceria se deixou vencer pelo cansaço da longa viagem, pela emoção da descoberta da pesca e pelo fascínio com a terra mato-grossense.
Amanhece em Poxoréu e Otávio se encanta com o azul do céu, o barulho das águas do rio e com a revoada barulhenta das araras e outros pássaros. O grupo baiano é disperso. Parte vai para fazendas na vila de Paraíso do Leste. Os solteiros pegam o rumo dos garimpos de diamante em Alto Coité, Raizinha e sabe-se lá Deus mais onde. Algumas famílias esperam a vez de embarcar numa picape Willys para Jarudore.
Com o topete arrepiado pelo vento, Otávio desembarcou da carroceria da picape em Jarudore, de onde nunca mais saiu. No dia seguinte, sua mãe o matriculou na Escola Estadual Franklin Cassiano da Silva, para concluir o aprendizado do abecedário e aprender a fazer as quatro operações.
– Como é seu nome guri? – pergunta a professora?
– Otávio – responde.
– Tem batistério ou certidão de nascimento?
– ‘Tá’ aqui – colabora a mãe, com a papelada nas mãos.
– Seu nome não é Otávio!
– Não, senhora! É Otaviano Francisco Vieira. Otávio é apelido – explica tímido olhando para o piso de chão batido da escola.
O apelido continua. Seo Otávio se casou com dona Joselice no Cartório de Paz de Jarudore. O casal tem duas filhas: Maria de Fátima e Elizete, ambas nascidas em Jarudore, e a exemplo do pai, ex-alunas da Escola Franklin Cassiano da Silva.
Sem fronteira
Desde pequeno seo Otávio lida com gado e na juventude comprou seu primeiro sítio, mas não é posseiro rural em Jarudore. Sua terra localiza-se fora dos limites daquele distrito de Poxoréu. No entanto, sua casa é ali, bem no centro, na pavimentada avenida Manoel Cândido de Oliveira. “Aqui é meu ninho”. É assim que se refere ao lar onde mora há mais de 46 anos.
Em Jarudore é assim. Parte da comunidade mora na vila e tem propriedades fora do distrito. Outros são pequenos agropecuaristas, comerciantes, prestadores de serviços, funcionários públicos, estudantes e aposentados residentes e estabelecidos naquela localidade “É assim, porque em Mato Grosso é assim, no Brasil é assim, pois não há isolamento de regiões em país livre”, observa seo Otávio.
JARUDORE – Seo Otávio é um dos exemplos da formação social de Jarudore, distrito com área de 4.706 hectares e ameaçado de desintrusão para ceder espaço a reserva indígena Jarudore, dos bororos.
A questão de Jarudore será tratada em material à parte. Seo Otávio é um dos vultos da série diária PERSONAGENS, por merecimento e para que Mato Grosso saiba um pouco mais sobre a composição social de suas cidades, vilas e zona rural em áreas com e sem segurança jurídica.
Eduardo Gomes de Andrade – blogdoeduardogomes
FOTO: Marcos Negrini em arquivo de 2012