Escrever é ato de contracultura

Mas será possível dizer que a aranha tem o projeto de tecer sua teia? Não creio. Melhor dizer que a teia tem o projeto de ser tecida. Fernando Deligny

 

Começar um registro escrito é um abalo na sua ordem de estrutura. Pois se permite o início, uma cadeia começa a se formar. No plano microssocial é o despossamento das identidades fixas, da definição do ser humano em estatísticas, é o abandono do velho si mesmo e de toda cosmovisão de mundo prescrita em nomes e interpretações. Escrever tem potência quando desloca o campo subjetivo, quando agride a ordem dos costumes e a imutabilidade social. A potência da escrita escapa ao que se lê no banco de dados.
No plano micropolítico a escrita também tem intenção subjetiva, pois se opera uma desestruturação pessoal e a tendência ao rompimento do conservadorismo cotidiano. Dessa forma ao funcionando como rede, a decisão da escrita promove um descentramento da ordem sistemática capitalista porque faz propagar comportamentos não explorados pela mídia e não incentivados pelo tradicionalismo x modismo.

Como escrever a partir de nossas experiências, que hora fazem emergir em nossas conversas a possibilidade do entendimento e da definição de vários conceitos operacionais pra nossa realidade política e existencial e em outra hora fazem-nos distanciar por respeito mesmo às diferenças e até contradições entre o que se quer e o que se faz. A questão que se coloca é como fazer da escrita a abertura para outras experiências existenciais e políticas? É a partir dessa questão que chamamos a partir do movimento punk que coloco para pensar agora, nesse texto que aqui escrevo, sobre o ato da escrita como uma insurgência: como é possível com sua manifestação falar em contravenção ao sistema de desigualdades, de padronizações, de normalidades…?

Se a decisão da escrita nos coloca como seres à espreita, talvez justamente o motivo da tensão-atenção no escrever faz emergir diretamente à solidão do mergulho no tempo: não há respostas imediatas nem mediadas. Não há autor que faça sentido realmente se não for atemporal ao que se vive, se não estiver dentro e fora dele como um raio, num aquém e num além do próprio conjunto de sentidos, interpretações, cálculos, racionalidades e sentimentos atuais. O sentido se faz unindo leituras de autores diversos, mas só se torna ferramente intelectual se a discussão se insere no terreno prático e teórico, enriquecendo um ao outro, como proposta de transformação social e individual.

Justamente o primeiro ponto quando se põe a escrever: O desmanchamento. Algo de blanchoniano mesmo. Se tem algo de lirismo, é preciso pensar nisso com violência.O que se segue à decisão da escrita é um novo encadeamento do que se faz com o tempo. O tempo da escrita é ocioso às batidas do trabalho forçado, do tempo medido, do compromisso moral.

Ela está nessa passagem que origina encadeamentos de produção da novas subjetividades, outros modos de fazer… Assim como no trabalho a imaterialidade da criação é recrutada em detrimento do trabalho mecânico, também na escrita com potencial revolucionário, anárquico, inventivo, está a singularidade de pontos de vista não-autoritários, nela se desvelam os véus de um mundo novo que está aqui, mas que é a todo momento esmagado, escamoteado, desprivilegiado pela ordem macropolítica quando sua inteligência é requisitada para o mundo do trabalho, do mercado, refutado seu o fator político de autotransformação e legitimação de si e seu modo de viver. Para escapar a esses grilhões é preciso desmanchar-se dos padrões.

Aí está o primeiro desmanchamento que a escrita instala no seio da sua sociedade: 1. O desmanchamento dos padrões que ativam o preconceito. 2. Convoca a dúvida sobre o que é normalidade. 3. Faz desconfiar de si mesmo ao perceber que não é possível existir como ser pensante e ativo de sua própria realidade se se está impedido de emancipar-se intelectualmente em relação aos ditames dos poderes que agem sobre a vida – o consumo, o medo, a alienação midiática.

Um encontro com uma razão própria é promovido. Se a razão é “maneira de organizar a realidade pela qual esta se torna compreensível” (CHAUÍ, 2002, p. 59), ela deve ser tomada das mãos dos que a legitimam, para se tornar um saber sobre si mesmo. Ao invés de importar o que é de fora, fazer do fora um dispositivo de fortalecimento de sua vontade, desejos e sonhos.

Escrever como movimento de posição é um saber de resistência não porque compete diretamente com o sistema, mas sim porque se instala dentro dele, e se legitima ao criar laços de afinidade e coletividade. Do que falo não é possível estar separado entre sujeito – objeto, entre pesquisador – pesquisado, mas sobre uma integralidade que os permeia, dando a um e a outro, a potência da voz, a potência de se fazer ouvir.

Quando tal razão ganha um corpo organizado em torno da afinidade, da vontade de estar juntos celebrando o tempo em comum a favor de um desejo que lhes é próprio, festivo e alavanca de satisfação para as próprias urgências, podemos dizer que uma vitalização social acontece, abrindo possibilidades de se pensar novamente o que é liberdade e de se propor existir de uma maneira que está ainda a ser criada. Escrever é um trabalho ético porque orgânico à produção do presente.

 

 

Ana Paula de Sant’Ana é professora na FAIPE
empoema@gmail.com