(Fr) – Uma Vila danada de Bela

Ruínas da antiga Matriz

Fundada pra garantir a posse do grilo internacional no coração do continente, na fronteira com a Bolívia, a primeira capital de Mato Grosso foi construída por mãos escravas, e orgulhosa, carrega o título de Cidade Negra.

 

O Guaporé com a Serra Ricardo Franco aos fundos
Quando se pergunta que VILA danada de BELA é essa? A resposta não poderia ser outra, senão: é a cidade negra onde lindas mulheres dançam o Chorado.

 

Brasileiríssima.

Injustiçada pela escravatura e a fuga dos brancos poderosos.

Bela, sensual e envolvente.

Negra.

De Ricardo Franco as águas rolam para o Guaporé

Devota.

Fraterna.

De coração aberto ao perdão.

Autora de uma página histórica quase tricentenária testemunhada pela água do rio Guaporé que passa ficando aos seus pés e da Serra Ricardo Franco que a contempla do alto, de onde também Deus e os orixás que acompanharam seus filhos caçulas desde que deixaram a África nos navios negreiros a enxergam com olhos de paternidade.

Salve a linda comunidade guardiã da fronteira Oeste brasileira, ô Deus!

Salve-a São Benedito! Salve-a o Divino Espírito Santo!

Salvem-na as Três Pessoas da Santíssima Trindade!

Salve-a Ogum!

Salve-a Xangô!

Salve-a Iansã!

Salve-a Nanã!

Salvem-na os demais orixás!

Salve-a o espírito da Rainha Teresa de Benguela!

Todos nós saudemos a cidade de Vila Bela da Santíssima Trindade, que foi a primeira capital de Mato Grosso.

A América Latina era feudo dos reis de Espanha e Portugal quando em 9 de maio de 1748 a Coroa Portuguesa criou a Capitania de Mato Grosso numa área de São Paulo. O nepotismo luso mostrou sua força e o rei Dom João VI nomeou seu primo e capitão-general Dom Antônio Rolim de Moura Tavares para governar o território recém-emancipado.

Mato Grosso era imenso vazio demográfico. Cuiabá tinha 32 anos e a aventura em busca do ouro empurrava a fronteira Oeste pra dentro dos domínios espanhóis quando Rolim de Moura fundou Vila Bela da Santíssima Trindade, em 19 de março de 1752, para ser capital do naco de terra que o primão lhe dera pra governar.

Até parece com o agora. Um primo do rei governando num palácio construído por mão de obra escrava numa terra conquistada na esperteza agrária pela fragilidade do Tratado das Tordesilhas, substituído pelo Tratado de Madri, que por falta de GPS tinha a utilidade de cobertor nas ensolaradas tardes de Mato Grosso.
Nos primórdios de Vila Bela havia temor de que a Espanha avançasse sobre o Oeste brasileiro. Agora, o risco é outro: a internacionalização. ONGs do exterior com apoio da Funai insuflam indivíduos ditos chiquitanos a brigarem por demarcação de áreas para essa tal etnia, originária da Bolívia, onde a própria pediu pra deixar de existir tornando-se boliviana por excelência. Indiferente aos riscos que representa para o Brasil a criação de nações indígenas bem na linha da fronteira, a classe política se faz de morta quanto a isso e a Federação da Agricultura e Pecuária (Famato) não enfrenta a situação porque teme desafiar o Ministério Público Federal (MPF).

Ao lado da Bolívia

Vila Bela engatinhou pronunciando em português enquanto os vizinhos bolivianos hablavam o mais puro espanhol bem ao seu lado. Falava nas ruas. Na igreja católica as orações que se ouviam eram rezadas fervorosamente em latim pelos padres brancos de costas para os fiéis da mesma cor; amém! Nas senzalas, quase imperceptíveis para não serem escutados pelos feitores e os capitães do mato, os escravos negros elevavam as mãos calejadas aos céus em cultos afros, balbuciando sua fé em dialetos africanos das aldeias de onde foram capturados; saravá!

Hoje, não há restrição religiosa. Cada um segue o caminho que mais lhe convier. Há sempre um pastor por perto oferecendo milagres para enriquecimento, não sem antes abocanhar o dízimo do coitado. Padres também correm a sacolinha. Nos terreiros aparecem muitas caras que frequentam o pé do altar católico.

 

NOSSA RAINHA – No ontem, o poder vassalo se esbaldava. Escravos, independentemente da idade, eram levados ao tronco, torturados, mutilados moral e fisicamente e mortos ao menor gesto em busca da liberdade que não havia fora do Quilombo do Piolho ou Quariterê, protegido pela floresta, e onde liderou a rainha Teresa de Benguela depois do assassinato de seu marido José Piolho, pelas forças coloniais.
A única rainha mato-grossense desafia os historiadores sobre sua origem. Nada se sabe sobre sua origem. Pouco também há sobre sua vida. Acredita-se que seu quilombo começou em 1740 e que teria resistido por duas décadas chegando a 300 habitantes com a população formada por negros, mestiços e índios. Sua Majestade é uma entre tantas lendas na cidade que assegurou a nacionalidade brasileira na fronteira Oeste.
Teresa de Benguela e seus súditos foram mortos. A liberdade pra eles acabou em 1791 quando a mão de ferro desceu sobre Quariterê transformando-o num amontoado de cinzas e de corpos negros.

 

Mato Grosso abandona Vila Bela

 

Uma decisão política levou a capital pra Vila Bela. Outra a retirou de lá. Em 28 de agosto de 1835, quando Dom Pedro II era imperador, o Império transferiu a sede do governo para Cuiabá. Os poderosos do governo e os togados disseram adeus e pegaram a estrada juntamente com o círculo do poder.

Os negros ficaram em Vila Bela na curva da estrada vendo a poeira dos cascos dos cavalos e das carroças baixarem enquanto os senhores sumiam na linha do horizonte.

O poder sempre foi fascinante. Antes os bajuladores e aproveitadores do Estado também usavam ternos. Nenhum tinha boton na lapela, mas ninguém dispensava um quê identificador. Não havia depósito salarial em conta-corrente no final do mês, mas a mamação era a mesma de hoje. Vantagem por fora sempre foi prática; por dentro, também. Mordomia nunca faltou, nem falta. A despesa sempre correu por conta do erário. A burocracia do poder não trabalhou no ontem nem o faz no agora, porque sempre teve costas quentes dos políticos, partidos e instituições que chancelam suas nomeações entra governo sai governo. Os crônicos nomeados nunca souberam o que é consciência e não conseguem se ver no espelho.

Os brancos se foram. Levaram consigo o medo generalizado do maculo, a hiperendemia que assolava Vila Bela. Era uma doença bacteriana com disenteria causada pelo carrapato, resultante da falta de higiene e que atingia principalmente os escravos.

Também chamada de mal del culo (mal do cu, em português) essa doença consistia na presença de muco malcheiroso e de ulcerações com relaxamento do esfíncter anal externo. Causou muitas mortes em Vila Bela e seus arredores.

Pouca coisa mudou por lá em termos de saneamento. Surgiram os banheiros com água quente, vasos sanitários e pias, chegaram os sabonetes florais, mas o esgoto ou é jogado nas fossas ou corre para o indefeso Guaporé. A prioridade para o dinheiro público é manter o rito do poder, inclusive na Câmara Municipal que é mantida com polpudo duodécimo em detrimento das prioridades do município.

Antes, a mão de ferro do poder controlava tudo. Agora, são muitas as mãos que decidem fora dos olhares do povo. Nem sempre os políticos se entendem e isso pode ter sido a causa do assassinato do vereador Milton Guilherme Müller (PTB), em 1998.

Boto se exibe no Guaporé em Vila Bela

Os negros superaram o maculo. Vencerem o isolamento e o abandono. Garantiram a continuidade do hasteamento de certa bandeira verde e amarela com os dizeres Ordem e Progresso nas bandas do Guaporé, onde botos-cor-de-rosa e botos-cinza nunca deixam de se apresentar em balés encantadores na água que mais abaixo une os povos brasileiro e boliviano.

No ontem havia o comércio formiguinha entre os dois lados da fronteira. Hoje, também ele existe, mas, independentemente de época, nunca foi controlado pela Receita Federal. Os 16.271 habitantes do município que tem 13.420,436 km² ficam jogados à própria sorte e mesmo assim conseguem progredir. Essa população em parte é formada por ‘boliveiros’ e ‘brasilianos’ – mistura dos dois povos, já que é comum casamento de noivos que em busca do amor atravessam a linha imaginária que bota o Brasil de um lado e a Bolívia do outro.

Vila Bela fervorosa

O rebanho bovino e bubalino soma quase um mihão de cabeças em 1.550 propriedades voltadas à pecuária e se situa entre os maiores do Brasil. O gado começou a pastar em Vila Bela no final do século XVIII levado por comitivas nas trilhas abertas na mata, num trajeto com mais de 200 quilômetros, que começava em Porto Salitre (agora Porto Esperidião), aonde os animais chegavam em embarcações pelo rio Jauru.

Hoje a boiada das invernadas do município é transportada em carretas por rodovias pavimentadas para os frigoríficos em Cáceres, Pontes e Lacerda, São José dos Quatro Marcos e Araputanga, num raio de 300 quilômetros dependendo do ponto de embarque.

O comércio local é modesto, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) numa escala de zero a um, é de 0,645 e a renda per capita R$ 20.687,06.

 

Coronel Fawcett

 

Fawcett

INDIANA – Vila Bela tem extensa fronteira, mas não conta com Delegacia da Polícia Federal, para delírio dos barões do pó. Não tem sequer um posto da Polícia Rodoviária Federal nos 75 quilômetros no ramo da BR-174 que faz sua ligação com Pontes e Lacerda e a malha rodoviária nacional. Por mais de um século e meio sua gente marcou a presença brasileira na região. Somente em 1906 a Bolívia tratou de demarcar seus domínios fronteiriços ao Brasil e Peru.

Esse trabalho demarcatório foi executado pelo coronel inglês Percy Harrison Fawcett, durante cinco anos. Depois Fawcett partiu em busca da Cidade Z nos confins da Serra do Roncador, no Vale do Araguaia, onde acabou canibalizado por índios.

Fawcett desapareceu em 1925, na Serra do Roncador, juntamente com seu filho mais velho, Jack, e um amigo desse, Railegh Rimmell. O mistério que envolve esse caso inspirou George Lucas a criar o personagem Indiana Jones, na telona interpretado por Harrison Ford e dirigido por Steven Spielberg.

VILA BELA – Região Amazônica, fronteira com a Bolívia. Distante 530 quilômetros de Cuiabá por rodovia pavimentada via Cáceres, Porto Esperidião e Pontes e Lacerda.

Vila Bela da Santíssima Trindade é um dos cinco municípios mato-grossenses na fronteira com 983 quilômetros (730 quilômetros em solo firme) entre Mato Grosso e Bolívia. São eles: Poconé, Cáceres, Porto Esperidião, Vila Bela e Comodoro.

 

Eduardo Gomes – blogdoeduardogomes

FOTOS:

1 – Felipe Barros

2, 3, 4 e 5 – blogdoeduardogomes

6 – José Medeiros – Site público do Governo de Mato Grosso

7 – Wikipedia

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