O discurso da ética e os canalhas

Ética. Palavra de ordem fixada no tempo e espaço. Três anos e sete meses. Se dava ali, mais precisamente, o início do maior processo depurativo da história da nossa República. Ficou mundialmente conhecido como Operação Lava Jato, cujo estopim se deu com a descoberta da ponta de um imenso novelo. Emaranhado que ainda não acabou seu desenrolar, e sabe-se lá quando acabará. Portanto, é quase imperativo se questionar sobre o que restará desta nação totalmente esfacelada. O que faremos com os cacos?

Vamos por partes, como Jack o Estripador. Qualquer semelhança da ficção com a realidade é mera coincidência. O cenário é assombroso. Contudo, sem pretensão de apresentar argumentos que constituem um gabarito ou manual a ser seguido, tomo a liberdade de propor iniciar pelos discursos de intolerância e ódio, que ardem os ouvidos de quem acredita na capacidade intelectiva do ser humano de aprender com os erros, de tornar-se melhor e consequentemente evoluir.

Contra aos direitos humanos. A favor dos humanos direitos”. Sofisma bastante empregado nos tempos atuais, que desnuda o recrudescimento do discurso reacionário contra a Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1948. Década em que foi instituído também o Código Penal Brasileiro, este, por vez, carece de atualização aos novos tempos, visando findar às prerrogativas funcionais que tornam imunes os autores das próprias regras do jogo. Portanto, não basta ser ético. Também é preciso parecer.

Portanto, estejamos atentos e alertas ao resumo de um paradigma muito mais complexo. A busca de uma solução à nação não deve se basear na antecipação do pleito em busca da consolidação da imagem de um salvador da pátria, um herói extraído dos quadrinhos da Marvel. A mudança do Brasil passa, necessariamente, pela capacidade de discernimento do seu povo. Optar pela ditadura militar seria usar a prerrogativa da democracia para atentar contra ela própria. Poderemos chamar de ‘democracídio’. Revela-se aí uma imperfeição da democracia, sempre vívida, orgânica e em movimento. Mas trata-se de querer aniquila-la, para dar refúgio à incapacidade de encarar as divergências.

O velho adágio popular diz que a diferença entre o remédio e o veneno é a dose. Numa democracia doente, ouvimos gritos de dor de uma convulsão popular. Uma enorme ferida está aberta no seio da República Democrática e de Direitos, que engatinha com os joelhos em brasas e os fere nos pontiagudos entulhos de uma cultura pueril. Eles teimam em não querer enxergar a educação como mola indutora do crescimento e progresso social. Preferem o terreno fértil adubado com o esterco da ignorância. Assim é mais fácil introjetar o discurso simplista. Presenciamos a intolerância, depois a euforia e, por fim, nos sobreveio novamente a apatia social.

Fomos às ruas em 2013. Em 2014, o circo da Copa do Mundo foi montado em 12 palcos (pão e circo). Aliás, a escolha do Brasil como sede está sendo investigada, sem falar de obras. A corrupção aparece embrenhada em todos os lugares. E assim, sem costume de participar ativamente do processo de decisão política que afeta a vida dos cidadãos, que o brasileiro preferiu voltar para o sofá. Dali, segue assistindo os mandos e desmandos. Vê com espanto a crise institucional nas três esferas da República Federativa – União, municípios e estados – e em sua trindade, Executivo, Legislativo e Judiciário.

Exemplo foi o que vimos acontecer há pouco no Senado Federal com a recondução ao cargo de senador, Aécio Neves; até então afastado por força de um pedido da Procuradoria Geral da República (PGR) deferido pela Suprema Corte, que depois de consultar o mapa cartesiano da Constituição Federal percebeu o quadrado de cada um. Autônomos e independentes são os Poderes. Harmoniosos? Não. Aliás, é inegável que o senador tucano adorou voltar ao seu quadrado. Isto mesmo considerando o nódoa à imagem da Câmara Alta perante a opinião pública, ignorando o clamor social da moralidade e zelo com a coisa pública.

Uma rápida ressalva! Claro, é preciso dizer. Sejamos francamente justos. Todos são inocentes, até que se prove o contrário. Condição contida no âmbito da faculdade dos direitos fundamentais. Consequentemente, vale lembrar que somos regidos não apenas pelo ‘Espirito das Leis’ defendido pelo filósofo francês Montesquieu, em 1748, mas pela ética aristotélica de três séculos antes de Cristo (a.C). Uma ética rígida e inflexível, que ganhou maleabilidade com o caráter misericordioso e perdoador do Cristianismo.

Em tempos modernos, os niilistas e o Estado laico deram espaço a um conceito mais complexo, considerando o amor como afeto capaz de direcionar a conduta. A capacidade de escolha é o que nos diferencia dos animais. É intrínseco. Natural valer-se do poder da liberdade, da capacidade de decisão. Opções baseadas, por vezes, num arcabouço de valores adquiridos por meio das experiências. Outras vezes, alicerçadas meramente no poder instintivo, mais conhecido como impulso (leia-se irracional).

Inevitavelmente, enveredamos pela seara das virtudes, condição ‘sine qua non’ não há progresso intelectual, político, humano e social. É o conjunto de valores morais que constituem a ética. O conhecido clamor pela ordem bradado pelas ruas, praças e redes sociais; premissa irrevogável para que façamos cumprir o tão propalado progresso que estampa a bandeira nacional.

É preciso ter sensibilidade para sintonizar-se com o espirito do tempo, que trata como fundamentos à transparência, idoneidade e o respeito a tudo que se diz público. É pauta nas rodas de bares, cafés, restaurantes, bibliotecas, teatros, novelas e cinemas. A sétima arte acaba de lançar o filme ‘Polícia Federal – A Lei é Para Todos’, que retrata a saga de uma ‘força-tarefa’ constituída de uma competente equipe de procuradores, liderada por Deltan Dalagnol, e o juiz da 13 Vara Federal de Curitiba, Sérgio Moro. Sem falar nas mais de 380 páginas escritas pelo jornalista Vlademir Netto, em ‘Lava Jato’.

Trazendo para o contexto mato-grossense, saltam nomes de operações como Barriga de Aluguel, conhecida também como Grampolândia, a Rêmora, Maquinários, Jurupari, Hygéa, Asafe, Ararath, Mensalinho e tantas outras que já se foram e as que ainda estão por vir. Não por acaso há um desejo coletivo. Um pensamento que rege nosso tempo e navega no revolto mar das incertezas, e que apontam a ética como sendo terra firme, um porto-seguro, forçando a despedida do hedonismo que nos restringe à busca do prazer individual, gozo, satisfação própria.

É preciso pensar, respeitar e amar como se houvesse amanhã. Mas também como se não houvesse. Viver o dia como se fosse um presente do tempo. E é no tempo presente que podemos e devemos viver a maior parte das melhores experiências. Carecemos ainda daquele amor Ágape, que se posiciona pelo dom da empatia na preocupação com o próximo. Algo que nos faz bem. É o caminho certo para a felicidade. O afeto. A opção. A liberdade. A escolha pelo que nos parece certo ou errado, ciente das consequências e do caráter utilitário implícito na decisão. Se puder, prefira menos instinto e mais razão. Prefira o caráter ao invés da canalhice. Resista, reflita e logo exista. Se for preciso, Descartes, o Renê.

Me permita aqui uma rápida passagem pelos escritos de Jean-Jacques Rousseau, autor do ‘Discurso sobre a origem e o fundamento da desigualdade entre os homens’, que dizia que não há liberdade do ser humano em relação ao instinto.

Não há descolamento do homem em relação ao impulso natural. É o que observa o filósofo brasileiro Clóvis de Barros, que assegura que um pássaro só é livre para voar na poesia, porque na sua vida ele é escravo do voo. Incapaz de escolher outra alternativa, vive instintivamente. Impulso natural. Já nós podemos optar. Somos livres para refrear nosso lado animal.

Portanto, na hora de escolher, rogo para que saibamos utilizar essa capacidade cognitiva que nos fará alcançar a felicidade, especialmente se o sentimento for compartilhado, socializado. O mau uso leva à derrota. Afinal, quanto valem oito malas e cinco caixas repletas de vultuosa quantia de notas de papel moeda escondida num apartamento. O ex-ministro Geddel Vieira Lima meteu no ‘bunker’ do povo, quando decidiu fazer de uma residência a morada dos frutos da frondosa árvore da espécie nativa da corrupção. Nada menos que R$ 51 milhões. Esperto? E o preço da liberdade? Este é valor imensurável. Então não sejas canalha.

Não sejamos discípulos de Hipócrates. Quem nunca cometeu uma canalhice que atire a primeira pedra. Sendo a ética o pensamento em prol do bem coletivo, não concluo, pois este é um assunto infindável. Mas só quem já esteve cara a cara com um canalha assumido, é capaz de mensurar quão prejudiciais são essas figuras para qualquer meio de convivência social. Eles contaminam os ambientes. Mentes guiadas pelo instinto de superioridade, de estar num patamar maior. Custe o que custar, pisam no lombo, valem-se de trampolins, pisam nas costas. Oportunistas inescrupulosos. Fazem de tudo para manterem o ‘status quo’. Há necessidade urgente de uma ética, de zerarmos o jogo e começarmos de onde paramos. Regras melhores de convivência. Não será este o debate?

 

Hugo Fernandes é formado em jornalismo pelas Faculdades Integradas de Várzea Grande (FIVE) e pós-graduando em Ciências Políticas pelo Instituto Pós-grado de Cuiabá