De bem até demais com a vida – em lua de mel do primeiro casamento e a mulher já grávida, ostentando uma forma física e técnica invejável, no vigor dos seus 23 anos e marcando gols de tudo quanto era jeito – Bife deixa Aquidauana, no sul de Mato Grosso ainda não dividido e vai para Minas Gerais emprestado ao Atlético Mineiro. Era início de 1974 e o “Galo Carijó” estava se preparando para disputar o Campeonato Brasileiro.
Para os jogadores dos clubes convidados pela CBF, o certame daquele ano tinha um significado especial: 1974 era ano de Campeonato Mundial de Futebol na Alemanha e o certame seria uma excepcional vitrine para quem alimentava o sonho de ser convocado.
Atravessava o Brasil uma grave crise de falta de centroavantes ar-tilheiros. Os chamados pontas de lança – atacantes que voltavam para pegar a bola no meio do campo e arrancavam para tabelar com os centroavantes – existiam muitos. Mas os “matadores”, como era o caso de Bife, estavam em baixa…
O Atlético tinha dois centroavantes: o jovem Campos, que cumpria suspensão de um ano, e Reinaldo, ainda nos juniores, era simplesmente uma promessa. Aliás, uma promessa que virou muito cedo uma grande decepção: Reinaldo acabou se enveredando pelos caminhos das drogas e inclusive puxou muitos anos de cadeia…
Quando Bife chegou no clube mineiro, o Atlético estava tentando resolver seu problema de falta de goleadores com Totonho, um negão emprestado pelo Santos. Totonho tinha físico para ser um grande centroavante, mas a bolinha que jogava…
Bife começou a treinar no Atlético como “ponta de lança”. E fazia muito bem sua parte: voltava, armava as jogadas, passando bolas redondinhas para Totonho. Mas só recebia bolas quadradas de volta. E mesmo com as bolas açucaradas de Bife, o centroavante do Santos não desencantava.
Um dia durante um coletivo, o então técnico do Atlético, Telê Santana, explodiu com Totonho: “Porra, rapaz, o Bife ajeita as bolas direitinho pra você e só recebe bola quadrada de volta. Você está a fim de f… seu companheiro? Que sacanagem é essa!…”
Bife ia se destacando a cada treino. E sua contratação já estava tão certa que até medidas de ternos para viajar o alfaiate do clube já tinha tirado do jogador.
Foi no final de um treino do “Galo” que uma pessoa se aproximou de Bife e lhe disse que precisava ter uma conversa com ele. Coisa de pouco tempo – garantiu o recém-chegado
– Estou as suas ordens, pode falar… – disse-lhe Bife.
– É o seguinte: eu quero que você troque de nome… não fica bem o Atlético ter no seu time um jogador com nome de carne de vaca. Você pode ser chamado de Silva, de Oliveira… – ponderou
– Olha, companheiro, eu sou conhecido como Bife e gosto do meu apelido. Não vou mudar meu nome por nada neste mundo… – reagiu Bife.
– Mas…
Bife interrompeu o visitante: “O próprio Cruzeiro tem o Grapete, o Romeu Cambalhota…”
– O Cruzeiro é uma coisa e o Atlético outra, rapaz! – argumentou o visitante.
Telê Santana, que acompanhava a conversa, meteu a colher de pau no meio do angu:
– O Bife não vai trocar de nome, não! Se ele gosta de ser chamado de Bife, é assim que ele vai continuar sendo chamado aqui no Atlético.
O homem foi embora aparentemente muito contrariado com o resultado da conversa com o jogador e o técnico. E só então Bife e Telê Santana ficaram sabendo que o visitante era um importante diretor do Atlético.
A rotina de viver entre um quarto de hotel e os treinos estava cansando Bife. Para complicar ainda mais sua permanência em Belo Horizonte, sua mulher, que ficara em Aquidauana com a mãe dela, estava tendo sérios problemas com a gravidez…
Além da tortura de estar vivendo longe da mulher e da sua terra, Bife não suportava mais a vontade de comer pão de queijo e ventrechas fresquinhas de pacu…
Num final de semana, Bife decidiu retornar para Aquidauana. Não adiantaram as ponderações de dirigentes do Atlético. Nem as perspectivas de Bife assinar um contrato milionário e as chances de se projetar numa compe-tição do nível do Campeonato Brasileiro e até ser convocado para a Seleção Brasileira de Futebol foram suficientes para convencer o jogador a reconside-rar a decisão.
– Eu tinha acertado sozinho a Mega-Sena acumulada, mas joguei o cartão fora. Foi a maior besteira que fiz na vida como jogador de futebol não ter ficado no Atlético Mineiro – penitenciava-se Bife pela vida afora…
Bife tinha verdadeiro orgulho e até paixão pelo seu apelido, que herdou quando ainda era menino em Aquidauana e cuja origem todo mundo sabe: ele era entregador de marmitas na cidade onde nasceu, cresceu e despontou para o futebol. Naquele tempo não existia ainda o marmitex e a comida saía dos restaurantes em marmitas individuais de alumínio, penduradas em duas alças para facilitar a condução do alimento.
Uma tarde, antes de um treino no campo de futebol do bairro onde morava, Bife, então menino pobre que trabalhava para ajudar a família, comentou com os companheiros de pelada que comia carne todo dia. E explicou como: ao longo do trajeto que percorria diariamente para fazer a entrega do almoço aos clientes do restaurante, ele ia destampando as marmitas e mandando bifes para o papo…
Pronto: a partir daquele instante, nunca mais foi o Zé, o Oliveira, o Silva… e sim o Bife que encantou multidões em Mato Grosso, ainda não e depois dividido, São Paulo e até de Portugal com sua arte requintada de jogar bola e sua insaciável fome de fazer belos gols, talvez bem maior do que a que tinha quando violava as marmitas para se fartar de bifes…
PIS – Reproduzido do livro Casos de todos os tempos Folclore do futebol de Mato Grosso, do jornalista e professor de Educação Física Nelson Severino