Regra só para Mato Grosso

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1967. Mixto e Operário decidem no Dutrinha o returno do 1º Campeonato de Futebol Profissional de Cuiabá, que contou ainda com a participação de Dom Bosco, Palmeiras, Boa Vista, Riachuelo e São Cristóvão. O Operário entrou no certame como convidado especial, porque Várzea Grande, cuja prefeita era Sarita Baracat, estava completando 100 anos. Uma justa homenagem ao vizinho município.

O Mixto havia ganho o primeiro turno e lhe bastava um empate para ficar com o título histórico. Jogo difícil, que ia se transformando numa verdadeira batalha à medida que a partida caminhava para o final, com a torcida do Mixto ensaiando as primeiras comemorações com o placar em 0x0.

Decorriam 32 minutos do segundo tempo quando, num ataque do Operário, a bola ia entrando no gol, com o arqueiro Washington de Matos já vencido, mas alguém do Mixto desviou sua trajetória com a mão. Em cima do lance, o juiz sargento Rodrigues marcou o pênalti.

A torcida do Operário incendeia o Dutrinha, com seu grito de guerra para incentivar o tricolor, enquanto a do Mixto reza, faz figa e promessas…

O meia armador operariano Beto ajeita a bola na marca da cal, corre, chuta… e Washington defende. Os torcedores mixtenses explodem de alegria, que durou só uns segundos, porque o juiz mandou repetir a cobrança, alegando que o goleiro havia andado antes de Beto bater na bola.

Estava formado um colossal sururu no Dutrinha, com a decisão do Mixto de não permitir a repetição do pênalti. O goleiro Washington de Matos – que não é o mesmo Washington Alicate que defendeu o Mixto anos mais tarde – um dos mais revoltados com a arbitragem, acabou sendo expulso de campo.

Depois de algum tempo de muito bate-boca, empurra-empurra, ameaças de pancadaria, o jogo foi suspenso. O presidente do Operário, Rubens dos Santos, insistia que os 13 minutos restantes do jogo tinham que ser disputados 48 horas depois, com portões abertos, recomeçando com a cobrança do pênalti.

O Conselho Arbitral da Federação Mato-grossense de Desportos foi convocado para uma reunião extraordinária na segunda-feira para decidir sobre o jogo suspenso pelo juiz sargento Rodrigues. A tese de Rubens dos Santos acabou prevalecendo na reunião do Arbitral, apesar dos protestos do esperto presidente mixtense Ranulpho Paes de Barros.
Quando os dois clubes chegaram ao Dutrinha na quarta-feira para disputar os 13 minutos finais, o técnico operariano Batista Jaudy espalhou meio na malandragem que havia substituído o cobrador de pênalti, que não seria mais Beto, mas, sim, o zagueiro central Gonçalo. Não adiantou Beto chorar as mágoas e implorar a Jaudy para deixá-lo bater o pênalti de novo…

Pouco antes da cobrança do pênalti que reiniciaria o jogo, os mixtenses – jogadores, diretores, torcedores – partiram para cima de Gonçalo, fazendo uma verdadeira guerra de nervos para arrasar seu estado emocional. E conseguiram, claro, com tanto xingamento, ofensas, gozação, humilhação…

Estava tudo pronto para a cobrança do pênalti, com o zagueiro central Xexeta no gol no lugar de Washington de Matos, quando Jaudy gritou: “É você quem bate, Beto!…”

Não havia mais tempo para os mixtenses tentarem deixar Beto nervoso. Ele cobrou o pênalti e fez 1×0, resultado que perdurou até o fim do jogo, para desespero dos alvinegros e alegria dos tricolores…

Com o Operário vencendo o returno, os dois clubes partiram para a decisão do campeonato, numa melhor de 4 pontos. No primeiro jogo, o Operário ganhou de 3×0, com gols de Gebara, Fião e Beto. No segundo jogo, Fião fez o único gol que deu o histórico título ao clube várzea-grandense.

No último jogo, antes de começar o 2° tempo, Rubens dos Santos, de braços bem abertos no alambrado, chamou Beto e determinou que ele levasse um recado para o juiz paulista Abílio San Ferraz.

– Mas ele vai me expulsar, presidente!… – ponderou Beto

– Vai…, dá o recado, homem! – insistiu Rubens dos Santos.

Beto aproximou-se de San Ferraz e lhe disse meio desconfiado: “Vou lhe dar um recado do meu presidente, mas sei que o senhor vai me expulsar…”

– Pois diga, rapaz! – ordenou o juiz.

– Ele mandou dizer para o senhor apitar direitinho o segundo tempo e não se esquecer que o seu avião sai da cidade do nosso clube…

– Seu presidente está de cabeça quente… – comentou San Ferraz.

– O senhor não vai me expulsar? – perguntou Beto.

San Ferraz fez de conta que não ouviu a pergunta. E caminhou para o centro do campo para reiniciar o jogo.
Algum tempo depois da decisão, o mais famoso advogado dos tribunais esportivos do Brasil, Valed Perry, veio a Cuiabá fazer uma palestra e ao saber da papagaiada que marcara a decisão do campeonato de 1967, disse que em nenhum lugar do mundo existe uma regra que determina que um jogo interrompido seja reiniciado para completar os minutos que faltavam para acabar.

– Tinha que ser simplesmente realizado outro jogo. Essa foi demais!… – comentou Perry.

PS – Reproduzido do livro Casos de todos os tempos Folclore do futebol de Mato Grosso, do jornalista e professor de Educação Física Nelson Severino