Um escritor gigante. Esquecido…

A assertiva atribuída a Estevão de Mendonça, “morre duas vezes quem morre em Cuiabá”, é confirmada todas as vezes que nos referimos a uma grande figura, sobretudo da área da cultura. Desta vez, nos vem a evidencia o caso de Ricardo Guilherme Dick. Tido como um dos maiores escritores da história de Mato Grosso e um dos grandes do Brasil no século XX, Dick é um esquecido em sua terra natal. No ultimo dia 9 completou dez anos de sua morte. Nenhuma lembrança, nenhuma rememoração, nenhum tributo lhe foi prestado.

Aos 72 anos (Raizama, distrito de Chapada dos Guimarães – 16/10/1936) Dick já havia se tornado aquilo que se denomina de “cult”, ou seja, um autor cultuado, respeitado, estudado, referenciado mais pouco conhecido. Com quase duas dezenas de obras publicadas, e várias inéditas, despertara, desde já o seu primeiro romance ‘Deus de Caim’, de 1968, o interesse de escritores e de críticos.

Era um escritor caudaloso, represado por angústias inúmeras, inclusive a de ser pouco divulgado e ter dificuldades imensas em se ver publicado. Neste sentido, vejo-lhe proximidade com outros dois com quem convivi: Silva Freire e Ronaldo de Castro. E esta parece ser uma espécie de danação de escritores expressivos de nossa terra. Em 2001, numa entrevista a Marcelo Rubens Paiva, da Folha de S. Paulo, Dick apontaria que a distancia impedia que fosse publicado pelas grandes editoras, todas localizadas no eixo Rio – São Paulo. Ainda que a geografia possa ser determinante, penso que um elemento fundamental nesse distanciamento é precisamente a falta de uma politica estadual do livro e de estimulo à leitura de autores mato-grossenses. Há anos estamos lutando para que se torne realidade o ensino da literatura feita em Mato Grosso, bem como das matérias de história e de geografia, além das escolas também como exigência nos concursos públicos. Ademais, não existem bibliotecas sejam as escolares, sejam as públicas nos municípios. Conversei várias vezes com Dick sobre esse tema.

Agora, Guilherme Dick voltou a ser novamente lembrado pela grande imprensa. Como sempre, a partir de fora. Lamentavelmente, parece que para ser lembrado aqui é necessária uma força exógena. Se não lhe foi prestado nenhum tributo na data decenária de seu falecimento, agora, por vias transversas, setores especializados da literatura estão publicando referencias ao mato-grossense. Foi o que aconteceu neste domingo, quando a Folha de S. Paulo publicou matéria assinada por Rodrigo Simon, na qual se faz várias citações a Dick. É que a FLIP – Festa Literária Internacional de Paraty, em sua 16ª realização, traz como homenageada a poeta, romancista, teatróloga Hilda Hilst [Jaú: 21/04/1930 —Campinas: 4/02/2004] considerada pela crítica especializada como uma das maiores escritoras em língua portuguesa do século XX e grande admiradora de Dick. Pois bem, lembra o autor do artigo, por diversas vezes ela se referiu a Guilherme Dick como um dos grandes ficcionistas brasileiros.

Em entrevista concedida ao Jornal do Brasil, no ano de 1989, às pesquisadoras Vilma Arêas, da Unicamp, e Berta Waldman da USP, perguntada sobre quais escritores nacionais a influenciavam, Hilda diria: “Um homem raro e especial que me impressiona muito é o Ricardo Guilherme Dicke, autor de ‘Madona dos Páramos’. Nele descubro o fervor e a potência, pois a literatura não é nada se não for o essencial”. E ainda: “Seu texto é mais bonito que o de Guimarães Rosa”. E repetia essa admiração sempre que o tema lhe era posto, nunca hesitando em colocar o mato-grossense ao lado de Machado de Assis, Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Dois anos antes, numa enquete realizada pelo mesmo JB, a escritora indicou Dick como o “intelectual do Ano”. Gutemberg Medeiros, amigo e estudioso da obra de Hilst, declarou que “o que ela mais admirava nele era de ordem especular: o tratamento da linguagem, a capacidade de transformar a língua portuguesa”. O nosso escritor atrairia outros olhares vitais do mundo cultural como o do festejado Glauber Rocha e o de um indiscutível cânone brasileiro, João Guimarães Rosa. Que por sinal, fez parte do júri que, em 1968, premiou ‘Deus de Caim’, seu primeiro romance publicado.  Na época, o Prêmio Walmap era um dos mais importantes do país. De sua segunda edição fizeram parte do júri, além do já citado, ainda Jorge Amado e Antônio Olinto, que como relator do parecer de premiação, escreveu: “Rosa falou de sua força envolvente, de sua impetuosidade vocabular. Jorge Amado realçou sua narrativa, sua coragem de narrar sem recursos falsamente literários. Ali estava um romancista de tipo novo, um homem capaz de abalar a nossa ficção”. Em sua ultima entrevista, publicada pelo O Globo em fevereiro de 2004, indagada sobre quem eram os grandes escritores brasileiros, Hilda disse: “Sei que sou um deles. Guimarães Rosa, Machado de Assis. Têm vários. O Guilherme Dicke, que praticamente não é conhecido, também é um gigante”.

Depois de ‘Deus de Caim’, viria ‘Caieira’ que, em 1977, ganhou o Prêmio Remington de Prosa. ‘Madona dos Páramos’, o terceiro romance, em 1981, ganhou o Prêmio Ficção de Brasília da Fundação Cultural do Distrito Federal.

Em 1989 fui o editor, na condição de presidente da Fundação Cultural de Mato Grosso, de seu primeiro e único livro de poesias, ‘A Chave do Abismo’. Os editores Ramon Carlini e Elaine Caniato estão agora publicando várias obras de Dick. Um trabalho meritório, ao qual a literatura brasileira renderá vênias.

Dick escrevia sem parar. Atravessava as madrugadas. Acordava tarde, muito tarde. Fumava muito, muito, em longos e compassados tragos. Parecia pairar sobre o tempo. Só ficava “bravo” quando se sentia emparedado por não ver os seus escritos publicados pelas grandes editoras. Deixou uma obra das mais significativas para a ficção nacional.

Que não seja mais um a morrer duas vezes, porque morreu em Cuiabá. Todo poeta é um vate, todo grande poeta tem premonições. Este é o Dick d’ ‘A Chave do Abismo’: “dentro do âmago do coração das noites profundas / ignoro antes de mim os homens que se foram para sempre / ignoro depois de mim os homens que virão e esperam chegar / nasce em meu coração um sonho infinito do universo imenso / que faz brotar-me nos olhos lágrimas de amargura / estradas desertas e brancas sob a lua calma eterna / longevidade longevidade seria quase querer a Eternidade”.

Sebastião Carlos Gomes de Carvalho é presidente da Academia Mato-grossense de Letras, publicou, entre outros, os livros de poemas: A Arquitetura do Homem, Hematopoemas, Pássaros Sonhadores; é advogado.