Esporte diminui tensão entre países, mas já provocou guerra
A decisão, nesta semana, de a Coreia do Norte enviar uma delegação à Olimpíada de Inverno a ser realizada na Coreia do Sul foi celebrada como uma possível abertura ao diálogo entre os países rivais, em constante estado de enfrentamento e tecnicamente ainda em guerra
A expectativa é de que a participação de atletas, líderes de torcida, artistas, espectadores e representantes do Norte nos Jogos de Inverno do Sul dê abertura para conversas sobre como reunir famílias coreanas separadas desde a guerra (1950-53) e como frear o escalonamento militar bilateral.
Não há indicativos de que Pyongyang pretenda rever seu programa nuclear, mas a aproximação por conta da Olimpíada é vista como um dos exemplos de diplomacia proporcionada pelo esporte.
Embora dificilmente competições esportivas consigam, por si só, resolver impasses geopolíticos, elas podem servir como um modo neutro de influenciar relações internacionais ou de promover harmonia entre povos em tempos de guerras.
Ao mesmo tempo, o esporte também tem o poder, em alguns casos, de acirrar rivalidades ou de servir como vitrine para resistência política.
Veja, a seguir, cinco outros casos de diplomacia esportiva na história recente, bem como dois casos em que as competições esportivas serviram para marcar diferenças sociopolíticas:
1- Diplomacia do pingue-pongue
Em abril de 1971, no auge da Guerra Fria, um time de mesa-tenistas se tornou o primeiro grupo de americanos a visitar a China desde sua conversão ao comunismo, em 1949. Eles haviam sido convidados pelos chineses para uma turnê de dez dias de jogos.
O país, à época, vivia em isolamento em relação ao resto do mundo. Seu então premiê, Chou En-lai, afirmou que a visita dos jogadores “inaugurou uma nova página nas relações entre nossos povos”.
A viagem reabriu o diálogo entre Washington e Pequim e pavimentou o caminho, no ano seguinte, para uma visita histórica do então presidente Richard Nixon à China, quando o americano se reuniu com Mao Tsé-Tung.
A chamada “diplomacia do pingue-pongue” serviu, assim, para forjar laços diplomáticos até então rompidos e para abrir a China ao mundo exterior.
Os dois países viriam a normalizar suas relações bilaterais em 1979, mas a rivalidade hoje voltou a crescer, nos governos de Donald Trump e Xi Jinping.
2 – Esporte contra o apartheid
Em 1960, o então premiê britânico, Harold Macmillan, fez um famoso discurso na África do Sul, citando os “ventos de mudança” que varriam o continente africano e insistindo ao governo do apartheid para “criar uma sociedade que respeite os direitos dos indivíduos”.
Foi a primeira vez que um líder internacional de alto escalão deu voz aos crescentes protestos globais contra o regime de segregação racial na África do Sul.
Isso abriu espaço para uma série de boicotes ao país no âmbito esportivo internacional, culminando, em 1964, com o Comitê Olímpico Internacional anunciando que a África do Sul seria banida da Olimpíada de Tóquio daquele ano.
As pressões levaram o governo sul-africano a incluir negros em suas equipes nacionais, medida vista como insuficiente pelos críticos. O Conselho Esportivo Sul-Africano chegou a lançar o slogan “Não há esporte normal em uma sociedade anormal”.
Sob fortes críticas internas e internacionais, o apartheid foi extinto em 1994.
O ex-presidente do conselho esportivo, Joe Ebrahim, disse em entrevista posterior que o esporte “mostrou às pessoas que não podíamos viver uma vida quase dupla, no sentido de ter uma sociedade que negava direitos universais básicos mas praticava esportes como se tudo fosse normal”.
3 – Coreias juntas na abertura das Olimpíadas
Antes mesmo dos Jogos de Inverno sul-coreanos deste ano, competições olímpicas já haviam servido de balão de ensaio para aproximação entre as Coreias.
Na Olimpíada de 2000 em Sydney, os atletas dos países desfilaram juntos na cerimônia de abertura, atrás de um cartaz que dizia apenas Coreia – ainda que tenham competido separadamente.
O desfile foi bastante celebrado à época como um símbolo de que a reconciliação bilateral seria possível. Quatro anos depois, em Atenas-2004, a ação se repetiu.
Mas, depois disso, os países voltaram a desfilar separadamente em Pequim, por exigência do Norte.
4 – Diplomacia do críquete
Após a independência do Reino Unido e a partilha do subcontinente indiano entre Índia e Paquistão, os dois países asiáticos desenvolveram forte rivalidade – tiveram ao menos três entraves militares ao longo de cinco décadas, sobretudo relacionados à região fronteiriça da Cashemira.
As diferenças religiosas (o Paquistão é de maioria muçulmana; a Índia, de maioria hindu) também são pano de fundo das tensões.
Em ocasiões distintas, o críquete – esporte popular em ambos países – foi usado como arma diplomática para amenizar tensões bilaterais.
Com aval dos governos, campeonatos conjuntos voltaram a ser disputados em 1978 – ainda que a rivalidade política tenha se refletido em campo: em determinada ocasião, uma vitória paquistanesa em uma partida de críquete foi comemorada por um jogador como “uma vitória dos muçulmanos sobre os hindus”.
Em 2005, depois de se sentarem lado a lado na arquibancada de uma partida de críquete, os então líderes Manmohan Singh e Pervez Musharraf emitiram declaração conjunta de que o processo de paz entre os dois países era “irreversível”.
Quando as relações bilaterais voltaram a azedar após militantes paquistaneses terem perpetrado, em 2008, um atentado que deixou 166 mortos em Mumbai, as partidas entre as seleções de críquete dos dois países novamente ficaram suspensas. Só voltaram a ocorrer entre 2012 e 2013.
5 – Competições de atletismo entre EUA e URSS
Em outubro de 1962, Estados Unidos e a União Soviética estiveram à beira de um conflito armado no episódio da crise dos mísseis em Cuba. Apenas dois meses antes, porém, multidões alegres torciam pelos feitos de atletas americanos e soviéticos em um estádio da Califórnia.
O evento esportivo foi um entre quase 20 competições bilaterais de atletismo realizadas nos dois países entre 1958 e 1985. “Duas nações, tão diferentes quanto suas crenças
políticas, se juntaram em campo”, descreveu, à época, um jornal californiano.
“Fora os Jogos Olímpicos, as séries atléticas entre EUA e URSS foram as mais destacadas competições esportivas da Guerra Fria no fim dos anos 1950 e 1960”, diz artigo de 2001 do Journal of Sport History. “Essas competições serviram muitos propósitos para líderes e para os povos dos dois países: funcionaram como (arma de) propaganda e diplomacia.”
Mas, simultaneamente, o esporte evidenciaria também o racha entre americanos e soviéticos. Em 1980, os Estados Unidos e 63 outros países boicotaram a Olimpíada de Moscou; a União Soviética retribuiria quatro anos mais tarde, boicotando a Olimpíada de Los Angeles.
Casos de enfrentamento no esporte:
1 – Vitória olímpica contra o nazismo
Os Jogos Olímpicos de 1936 em Berlim, na Alemanha, eram vistos pelo regime nazista de Adolf Hitler como uma forma de mostrar ao mundo sua doutrina de supremacia ariana.
Mas um atleta negro americano, neto de escravos, desafiou isso e se tornou um símbolo de resistência – além de um herói olímpico.
Jesse Owens conquistou quatro medalhas de ouro nos Jogos, nos 100 metros rasos, 200 metros rasos, revezamento de 4 x 100 metros e salto em distância.
Após sua morte, em 1980, Owens se tornou nome de uma rua e uma escola em Berlim.
2 – A guerra do futebol
Um jogo das eliminatórias da Copa do Mundo de 1970 acabou dando início a um período sangrento conhecido como a “guerra do futebol”.
Em 1969, a tensa partida entre os vizinhos El Salvador e Honduras (vencida pelo primeiro) teve agressões entre torcedores e, fora do estádio, resultou em agressões e assassinatos de salvadorenhos que moravam em Honduras. Estima-se que dezenas de milhares de imigrantes tenham fugido do país, temendo a violência.
O pano de fundo eram tensões migratórias, disputas territoriais e disparidades econômicas entre os dois países.
Em junho daquele ano, Honduras rompeu laços diplomáticos com El Salvador e, no mês seguinte, as Forças Armadas salvadorenhas lançaram ataques aéreos e terrestres contra alvos hondurenhos.
A guerra durou quatro dias – foi encerrada por um cessar-fogo mediado pela Organização dos Estados Americanos -, mas só uma década depois os dois países assinaram um tratado de paz.
Estima-se que o conflito tenha deixado mais de 2 mil mortos (em sua maioria civis hondurenhos) e até 130 mil pessoas deslocadas, sobretudo salvadorenhos.
BBC BRASIL
Fotos:
1 – REUTERS
2 e 5 AFP
3 e 7 – GETTI IMAGES
4 – PA
8 – OEA
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