Boa Midia

(Fr) – Chorado, sensual grito pela libertação do negro

Uma dança pela liberdade

 

A beleza delas e do bailado

Na fronteira com a Bolívia, em Vila Bela da Santíssima Trindade, nas fazendas e sítios naquele município, mães, tias, irmãs, cunhadas, primas e amigas dos escravos que seriam levados ao suplício descobriram um meio de amenizarem e até mesmo de evitarem a tortura dos seus. Inventaram a Dança do Chorado, que como o nome diz é um bailado permeado com lágrimas. Ao som dos profanos tambores e instrumentos de cordas, dançavam alucinadamente belas e sedutoras para os lacaios da casa-grande e até para os seus ocupantes.

 

Pés descalços como nos tempos da escravatura

A mulher do Chorado botava vestido de chita colorida com providenciais aberturas e decote para mostrar aos olhos gulosos dos gajos suas coxas grossas, seus seios arrebitados e sua bunda torneada.

Uma rosa vermelha ou amarela no cabelo pixaim.

Um colar de miçangas feito com cascas e frutos secos do mato.

Um perfume extraído de flores. A anca perfeita e tentadora.

Os dentes de brancura inigualável.

A boca carnuda.

Requebrava e em gemidos lascivos despertava desejos. 

Atiçava ainda mais a tara dos homens que tinham poder para punir ou absolver os escravos a um passo da tortura ou sendo submetidos a ela: gingava com uma garrafa de Canjinjin sobre o cabelo crespo reluzente e dava doses aos extasiados espectadores.

O forte teor alcoólico das talagadas com gosto agridoce, corpos bonitos a lhes esfregar… era um ai Jesus!

O que acontecia com uma e outra mulher enquanto as demais dançavam ninguém nunca registrou. Também não há detalhamento do que elas faziam quando cessava a dança e o som dos instrumentos musicais tocados por negros que as acompanhavam. De igual modo nunca se escreveu sobre o comportamento de brancas portuguesas e nascidas em Mato Grosso com os jovens negros. Enquanto seus homens se esbaldavam com as negras, um fuzuê silencioso acontecia entre quatro paredes nas casas-grandes ou em seus quintais. Não havia IBGE para recensear a quantidade de bebês mulatinhos que nasciam de mães brancas e negras. Literalmente era o toma lá dá cá; ora, pois, pois! Davam e se davam bem matrimonialmente as patroas. Puritanas senhoras brancas devotadas à Santa Madre e fiéis quando de pernas fechadas.

O que era dança de dor virou cultura e tradição. O Chorado encanta a todos e mais graça ainda ganha ao som do Conjunto Aurora do Quariterê, formado por mulheres negras com suas vozes roucas e seu ritmo afro-vila-belense saudando o Campo Verde, como a cidade é chamada pelos filhos negros:

 

Campo Verde Serenado

“O campo verde é serenado
O campo verde é Vila Bela
Campo verde é serenado
Campo verde é Vila Bela
Eu vou-me embora pra cidade
Da Santíssima Trindade
Vou-me embora pra cidade
Da Santíssima Trindade 
Seu eu soubesse que tu vinha
Fazia o dia maior
Dava o nó na fita verde
Outro no raio do sol
A folha da bananeira
De tão verde amarelou
O beijo da tua boca
De tão doce açucarou”

 

Vila Bela: o Congo é aqui

Festança

 

Em julho, Vila Bela cobre-se de cor e se deixa inundar pelo som da Festança, que reúne num só período as festas dedicadas ao Glorioso São Benedito, ao Divino Espírito Santo e às Três Pessoas da Santíssima Trindade.

No evento se misturam a Dança do Congo, a Dança do Chorado, ladainhas, celebração de missas, procissão, quermesse onde ninguém sabe onde começa o santo nem onde termina o profano.

É a mais pura idiossincrasia.

Uma dança ao Reio do Congo

Sem rancor, sem espírito revanchista, em paz e com espírito desarmado, Vila Bela sai às ruas para sua Festança.

Moças e vovós se juntam no bailado da sensualidade do Chorado, que também é apresentado em outras ocasiões.

Rapazes, homens fortes e anciãos fazem encenações do Congo.

O povo canta, dança e é feliz na terra multirracial e abençoada no coração da América do Sul.

Na Festança e fora dela a bebida mais consumida depois da cerveja é o Canjinjin, à base de cachaça, gengibre, mel, canela, ervas aromáticas e outros componentes.

A fórmula é guardada a sete chaves pelas mulheres que o fazem, mas a transmitem às suas herdeiras.

A sabedoria popular em Vila Bela diz que Canjinjin foi um jovem, forte e belo príncipe africano filho do Rei do Congo.

Ao batizarem a bebida com seu nome, as mulheres buscaram uma referência masculina para o produto, que dizem ser afrodisíaco na acepção da palavra.

 

Eduardo Gomes – Editor de blogdoeduardogomes

FOTOS:  José Medeiros

 

 

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