Lições para depois da crise
As grandes catástrofes têm o efeito de deixar importantes lições para a humanidade. Há uma sequência lógica: vem a catástrofe, os estragos acontecem, a dor e o sofrimento são enormes, a crise passa, as causas ficam total ou parcialmente visíveis e as lições ficam gravadas na realidade e na memória. O quanto as pessoas, no plano individual, e as sociedades, no plano coletivo, efetivamente aprendem é outra questão. Com inteligência e racionalidade, é possível identificar as causas, sistematizar as lições e mudar hábitos e comportamento.
O caráter mundial da pandemia, o isolamento social, a paradeira na economia, a perda de empregos, a debilitação financeira das empresas e das famílias, o empobrecimento, a destruição temporária do convívio entre as pessoas e o dano psicológico são aspectos desta crise como nunca o mundo havia experimentado. As dimensões do acontecimento são muitas: sanitárias, econômicas, psicológicas, sociológicas, políticas, religiosas, culturais etc. Vamos falar de algumas delas.
A crise nos remete do conceito de “aldeia global”. Essa expressão foi cunhada pelo canadense Herbert Marshal McLuhan (1911-1980), filósofo, educador e teórico sobre comunicação, que ficou mundialmente famoso por seus estudos sobre transformações sociais que viriam a ser provocadas pela revolução nas telecomunicações, computador e internet. Para ele, o mundo caminharia para um mercado único e integração acelerada entre as nações.
Há três causas essenciais para a formação da aldeia global: o aumento populacional, a revolução nas telecomunicações (incluindo o computador e a internet) e o barateamento do transporte. Atualmente, a quarta revolução tecnológica vem apressando a integração mundial e, se queremos a integração dos países para que todos desfrutem das conquistas da ciência e da tecnologia, a primeira lição é: devemos nos preocupar com o mundo inteiro, logo a fome na África e a miséria nas favelas do Brasil são problemas de toda a humanidade.
A segunda lição é: a desigualdade de renda pode ser tolerável, desde que as camadas mais pobres tenham o necessário para uma vida digna. Na Dinamarca, a mais pobre das famílias não condena os ricos, pois ela tem habitação digna, alimentação adequada, educação, saúde, assistência e lazer. Se a desigualdade resulta em hordas de pobres e miseráveis, ela não deve ser tolerada.
A terceira lição é: quanto maior a população, maior deve ser o cuidado com a natureza. Em 1930, o mundo tinha 2 bilhões de habitantes. Em 2050, daqui a pouco, terá 9,5 bilhões. Quando cresce a necessidade de meios de vida, crescem as exigências de respeito à natureza e preservação do meio ambiente. Isso leva à quarta lição: o consumismo atual é destrutivo e insustentável. O ser humano tem o desafio de aprender a tirar de fatores psicológicos e sociais as fontes de seu gozo, prazer e felicidade, e não do consumismo de coisas e mais coisas.
A quarta lição é que, nesse contexto, hábitos precisam ser modificados. Talvez aqui esteja o desafio mais difícil, porque trata de comportamento. A humanidade incorporou o péssimo hábito de reverenciar e admirar a ostentação e o esbanjamento. Ricos e famosos extraem aplausos e adulação mais por quanto ostentam e esbanjam do que pela riqueza em si.
A quinta é: o desemprego não deve ser admitido e, quando inevitável, uma renda básica deve ser garantida. Sou um economista liberal, no sentido de que defendo uma sociedade livre, que não acho perfeita, mas como a única capaz de prover liberdade e progresso material. Porém, não sou ingênuo, o sistema tem defeitos. Já escrevi que, se a humanidade substituir os trabalhadores por robôs cognitivos, deve ser criado um tributo sobre os robôs para pagar salários aos que perderam a vaga para a máquina.
A ideia parte de um aspecto óbvio: robô não consome, logo não haveria por que produzir comida, roupas, livros, músicas, carros etc. Robôs não usam essas coisas. Eles só precisam de um botão que os liga e energia que os põe em movimento. A economia, o trabalho e a produção são para o ser humano e demais seres vivos. Porém, não dá para confiar ao Estado a operação de arrecadar e distribuir. Colocar dinheiro na mão do governo é receita certa para os recursos chegarem aos pobres pelas metades.
Karl Jaspers disse que “o Estado é um monstro que, ainda por cima, deseja ser amado”. Inchado, ineficiente e corrupto, o governo na maior parte do mundo usa o dinheiro público primeiro para pagar a si mesmo, suas mordomias, seu excesso de funcionários e castas abastecidas com salários, benefícios, aposentadorias e pensões milionárias.
Recentemente saíram publicações sobre os salários, aposentadorias e pensões no governo, nos três poderes. Existem categorias que ganham mal, entre elas estão professores e policiais. Mas, a lista de supersalários, aposentarias e pensões milionárias é tão grande que é melhor inventar um mecanismo distributivo sem o governo, pois, como disse o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o governo é causa da desigualdade. A sexta lição é: o Estado tem que ser reformado; enquanto não for, é preciso achar outro mecanismo para fazer a distribuição.
Uma observação final, como bônus para discussão: parece-me ingênuo achar que os computadores vão tomar o lugar dos líderes. Como disse o filósofo André Comte-Sponville, “um computador pode resolver um problema, mas só um ser humano pode tomar uma decisão”. As lições da crise não se esgotam nas citadas aqui, é claro. Um bom exercício é fazer sua própria lista e, sobre ela, pensar e estudar.
José Pio Martins, economista, reitor da Universidade Positivo
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