Boca da noite. Céu avermelhado. Temperatura caindo. O chapadão treme uivando com a ventania do Cachorro Louco. Um rasgo no cerrado abre passagem aos carros que se aventuram pela BR-364.
Ao volante da Toyota Bandeirante, tenho os pés em brasas com o vapor do motor que entra pelas frestas do assoalho. A poeira impregnada no corpo e na roupa é companhia naquela trilha que liga Minas a Rondonópolis.
Paro na Pensão do Bento, no município de Alto Garças. Garanto o pouso. Com uma coberta peleja e algumas talagadas da branquinha enfrento o vento gelado que passa uivando, levantando poeira e carregando folhas mortas. No lusco-fusco clareando o dia 12 de agosto de 1973 retomo a viagem. Entre a cinza e o rebroto do cerrado vejo gado gordo, com o pelo liso e sem berne. Bela imagem do nosso abençoado Mato Grosso.
Naquele mesmo ano, não muito distante da Pensão do Bento, em Rondonópolis, o gaúcho Adão Riograndino Mariano Salles literalmente lançava a semente da mudança econômica regional cultivando na fazenda São Carlos a primeira lavoura de soja mato-grossense. Com pesquisa e investimentos Adão serviu de espelho para que a leguminosa chinesa se espalhasse por onde até Deus duvida.
A Pensão do Bento não mais existe. O poeirão vermelho e os atoleiros da 364 foram substituídos pelo asfalto que recebe tráfego intenso, pesado, nervoso, com muita pressa. O cerrado cedeu espaço à agricultura que produz para o mundo. O tempo passou passando, sem pressa, mas inexorável.
Mudanças aconteceram e muitas mais continuarão ocorrendo em Mato Grosso, como parte do ciclo evolutivo da Terra. Sem que notasse perdi a juventude daquela época, passei pela meia-idade e mergulhei nos setenta.
Menos por mim, que reconheço a fragilidade humana e entendo que somos transitórios, mas pelo comparativo entre o ontem e o agora para a coletividade – e mais ainda pelo temor do amanhã – tenho saudade daquele bom período de plena identificação do homem com o mundo, de mais calor humano e menos tecnologia, de mais vida e menos violência, de mais Cristo e menos cristianismo financeiro. Passou, tudo passa…
Agora a lavoura da soja vai além da linha do horizonte. A logística de transporte ganha diversificação. Tudo muda muito rapidamente na desembestada corrida do indivíduo contra a lógica de sua existência.
Todos nós sessentões, sem exceção, em maior ou menor escala, intencionalmente ou não, por ganância ou comodismo, de um modo ou outro destruímos a Pensão do Bento, derrubamos o cerrado e matamos sua fauna, desviamos de Mato Grosso o vento gelado que passava uivando, poluímos suas águas, corroemos costumes, solapamos valores tradicionais, desfiguramos conceitos familiares.
Abrimos a porta ao mundo tecnológico e impessoal. Digo aos meus filhos Jeisa, Agenor, Yasmin e Luiz Eduardo, e aos meus netos Ana Júlia, Maria Carolina e Eduardo: essa metamorfose não valeu a pena.
PS– Editorial de arquivo, postado há alguns anos, saudando a chegada do mês de agosto ou Mês do Cachorro Louco, época em que a natureza faz rebrotar a vegetação do cerrado, na sua luta para sobreviver aos avanços do dito desenvolvimento.
Excelente reflexão. Viemos de tempos difíceis, mas de pessoas com coração puro. Estamos navegando para um futuro tecnológico, mas que apresenta pessoas de coração endurecido. Deus salve os puros de coração.
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