RETROSPECTIVA 2020 – Tutu e Glória simbolizam a força do Pantanal
blogdoeduardogomes reproduz reportagem de 28 de setembro, quando o Pantanal ardia devorado pelo fogo descontrolado. Leiam e se atentem para as fotos, pra que possam compreender melhor o que aconteceu na maior área alagável do mundo.
Fogo, muito fogo. Calor insuportável. Ar irrespirável pela fumaça das queimadas. Ventos fortes. Baixa umidade relativa do ar. Visibilidade quase zero. Animais queimados por onde se olha. Cenário assustador não somente por essa situação, mas, sobretudo, pelo homem pantaneiro – figura principal e central daquela imensa planície com 195 mil km² que une Brasil, Bolívia e Paraguai. Sem saber como, quando e onde dará o primeiro passo, o casal Glória e Tutu de Arruda Falcão levanta o olhar marejado ao céu num questionamento silencioso ao Senhor – Por quê? Ao lado dela e dele, a cadelinha Nega, com as quatro patinhas sapecadas, não late e aumenta o silêncio sobre a terra que um dia foi reino das águas e agora arde descontroladamente.
Glória e Tutu moram na fazenda Pombeiro, em Poconé, onde nasceram. Ele aos 74 anos jura com o sotaque pantaneiro cantarolado e carregado com gírias regionais, que nunca viu nem ouviu falar em algo tão devastador.
O que o fogaréu em Poconé tem a ver com uma matéria de editoria internacional? Tem tudo!
Os incêndios florestais em Poconé são iguais aos do vizinho município de Cáceres, que é o ponto navegável mais ao Norte da Hidrovia Paraná-Paraguai. Pelo rio, a distância de Cáceres a Nueva Palmeira, no litoral atlântico uruguaio, é de 3.342 quilômetros. Acontece que a navegação comercial no trecho brasileiro ficou inviável. O fogaréu reflete na Bolívia, Paraguai, Uruguai e Argentina, no curso da chamada grande avenida líquida, por onde chegaram os colonizadores da fronteira Oeste brasileira.
No centro do continente, o Pantanal é uma imensa planície alagável internacional com 195 mil km², dos quais 150 mil no Brasil. Sua altitude média é 100 metros, mas há pontos em que o mesmo está abaixo do nível do mar. Essa característica leva o pantaneiro a se referir aos pequenos pontos não alagáveis chamando-os de cordilheiras.
O principal formador do Pantanal é o rio Paraguai, que nasce no Chapadão do Parecis, e ora agoniza pela falta de chuva há mais de 100 dias e o comprometimento de todos os seus afluentes, dos maiores aos córregos e corixos
O alagamento do Pantanal acontece com o transbordamento do rio Paraguai, que tem o período das águas altas entre novembro e abril. Fora dessa época, as águas encolhem, os corixos perdem volume e se torna visível o fenômeno conhecido como minhoqueiro, que nada mais é do que irregularidade no solo provocada pelo pisoteio da tropa e bovinos.
O minhoqueiro afeta a casqueadura dos equinos que pisam sobre o mesmo, menos o Cavalo Pantaneiro, animal nativo daquela região e única raça equipa genuinamente brasileira.
O sobe e desce das águas é tão cíclico quanto as enchentes que acontecem a cada 20 anos, porém, fogaréu igual ao de agora nenhum pantaneiro nunca viu, muito embora todos os anos o fogo entre nas pastagens e cause alguns dados.
Agora, além do volume das chamas, outro fato, esse político, chama a atenção: pela primeira vez os incêndios florestais foram politizados. Alguns dizem com crença bolsonariana que a causa de tudo é a falta de pisoteio do gado e de limpeza regular de pastagem com fogo; outros juram pela honestidade do ex-presidente Lula da Silva que as chamas foram acesas com a mão direita. Pobre os que se comportam assim!
A estiagem é severamente agravada pelas chamas.
O fogo devora piúvas, babaçus, pequizeiros, sarãs, guabirobas, aricás, aroeiras, palmeiras, jatobás, jamelões, lobeiras, ipês, buritis, carandás e tudo mais que se possa imaginar em árvores e vegetação rasteira no campo e nos capões.
Jacarés, onças, jaguatiricas, tatus, macacos, quatis, veados, araras, piranhas, emas, pacus, colhereiros, tuiuiús, biguás, lebres, lontras, capivaras, ariranhas, sabiás, canários, tucanos, seriemas, garças, abotoados, cacharas, lagartos, antas, tamanduás, cobras, saracuras, bichos-preguiça, aranhas, mosquitos, melros, joões-de-barro e centenas de outros animais viram cinzas.
Por onde passa o fogaréu deixa rastro de destruição com cenas dantescas pela dor da bicharada morrendo em agonia, da vegetação sendo consumida e das águas desaparecendo.
Perto da casa de Glória e Tutu o piscoso rio Cassange virou leito seco – não tem uma gota d’água.
A temperatura está sempre acima de 40 graus, inclusive à noite. O vento joga lufadas de calor sobre a pele esturricada do pantaneiro.
O fogo foge ao controle.
Sobre o solo há uma grossa camada de folhagem seca e galhos. As chamas encontram nesse ambiente local propício pra propagação avançando por baixo dessa vegetação e surpreendendo quem tenta contê-las.
O vento é outro fator que agrava os incêndios, pois atira labaredas a 50 metros ou mais do ponto em chama.
Nas áreas queimadas não se vê vida animal. Não se escuta mais o barulho das aves em algazarra no entardecer e amanhecer.
Ninguém carrega mais o repelente, pois não há o que repelir. Cenas apocalípticas.
O serviço meteorológico não prevê chuva para este setembro. Nem mesmo a natureza se manifesta quanto a isso.
A cigarra, que canta às 18 horas anunciando o fim do dia e tem aviso especial sobre o aguaceiro, morreu.
Virou cinzas.
Ninguém é capaz de avaliar quanto tempo será preciso para a recuperação do Pantanal. A flora rebrotará, como sempre acontece quando de incêndios, mas a intensidade das chamas agora foi além de tudo que se poderia imaginar para o maior fogo que viesse devorar a região. Além disso, a dizimação generalizada desequilibra a cadeia alimentar animal. Por todo lado que se olhe há sempre uma carcaça incinerada.
Chocante!
A pouca água que ainda teima em permanecer nos corixos some. A cada dia se transforma em barro, em pó.
Pobre Pantanal!
NOME – Em Poconé se alguém perguntar por Oises Falcão de Arruda, ninguém saberá informar, muito embora seus dois sobrenomes rotulem integrantes de uma das famílias mais tradicionais do Pantanal. No entanto, se o questionamento for sobre Tutu de Arruda Falcão, até os papagaios dirão que se trata do marido de dona Glória – o casal fazendeiro que vive na fazenda Pombeiro.
Tutu se acostumou tanto com o apelido, que em alguns momentos sequer consegue lembrar o próprio nome. Mesmo caminhando com dificuldade, em razão de uma queimadura no pé esquerdo, quando tentava controlar um incêndio, ele não se dá por vencido. Mexe dali, mexe daqui, ajuda a patroa nos afazeres domésticos, mas não se esquece que o fogaréu matou 25 reses de seu rebanho.
Triste tanto quanto todos no Pantanal, Tutu pede a Deus que chova. Mesmo em meio àquela tragédia, seu lado de bom pantaneiro em alguns momentos consegue fazê-lo feliz, vitorioso e comenta uma conquista que é de sua família e da vizinhança: Aqui não tchegô a curuvira. Curuvira, no linguajar do Pantanal significa coronavírus.
O FOTÓGRAFO – A ilustração desta reportagem somente foi possível graças ao conteúdo fotográfico do mestre do fotojornalismo José Medeiros, que além de sua atividade profissional também se dedica à luta em defesa do meio ambiente, com destaque para o Pantanal, região que o inspirou a publicar um livro em parceria com o repórter Rodrigo Vargas.
Redação blogdoeduardogomes
FOTOS:
José Medeiros, sendo que a última é de Facebook
Mais fotos de José Medeiros em: @josemedeirosfotografo
Você é campeão… caneta inigualável!!!! Emocionante…
Abraços
Eder Moraes
Falar bem do seu texto é sempre aquém do que ele merece. Só você pra traduzir o sentimento daquele povo tão ricamente.
Que tristeza o que está acontecendo no Pantanal. Este ano, realmente, é um ano de tragédias. Quem sobreviver a 2020 será um vencedor…
Marco Antônio Raimundo – Marcão
Bom dia, li e mandei para meu Amigo, e ex aluno, Vicente Falcão, primo do Tutu e ele gostou muito e pediu-me para lhe agradecer e parabenizar.
Jorge Santos
Impecável, como sempre!
Parabéns Brigadeiro.
Sirlei Theis
Texto fabuloso
Maria Elizabeth
Ótimo material
João Pedro Marques
Parabéns. Vocè é o único que coloca o Homem Pantaneiro também como vítima dessa catástrofe ambiental! A maioria dos jornalistas alija o animal mais importante da natureza, que é o Homem Pantaneiro! E não menosprezando os demais animais, pois também são vidas se perdendo.
Carlos Souza